África - Brasil
por Taiani MendesClementina de Jesus, feita pra vadiar, foi feita também para conectar dois continentes através da música e de sua presença imponente na cultura popular brasileira a partir da década de 1960, quando teve carreira tardia lançada por Hermínio Bello de Carvalho. Encarando-a como o elo perdido no Oceano Atlântico durante a diáspora, Clementina conta a história de vida da descendente de escravos nascida no escravocrata Vale do Paraíba fluminense, posteriormente doméstica e conhecida partideira da zona norte do Rio de Janeiro, ressaltando sua importância como portadora de memória ancestral, de certa forma única no cenário musical nacional, porém simultaneamente extremamente reconhecível nas (bis)avós e (bis)avôs afrodescendentes do país.
Se em Vou Rifar Meu Coração Ana Rieper usava a música romântica (ou brega) para tratar das paixões brasileiras, aqui a diretora enfoca Clementina de Jesus como porta-bandeira da negritude, com ela apresentando uma espécie de panorama do intercâmbio Brasil - África, abordando jongo, samba, curimba, umbanda, feijoada, cantigas centenárias, partido alto, malandragem e tradição oral. O cheiro é de casa e o gosto de conversa de fundo de quintal ou cozinha - como de fato ocorre com as netas preparando quitutes conforme fazia a cantora.
Passeando pelo quilombo, margeando a linha do trem, entrando na casa de pau a pique e revisitando a vila em que morava a artista, Rieper cria uma aconchegante estufa de história em que a música se encaixa naturalmente enquanto ilustração e momento solene quase de oração, pois quando Clementina abria a boca e mandava na lata alguma das inúmeras pérolas de seu repertório mental, a obrigação era respeitar, o que o filme faz perfeitamente.
Com descontraídos e valiosos depoimentos de familiares, colegas de shows e estudiosos como Nei Lopes e Luiz Antônio Simas, o documentário resgata nas imagens inéditas o clima dos registros de arquivo e encontra o bom humor da retratada em conversas abertas sobre sua vida pessoal e nas "polêmicas" envolvendo sua escola de samba - Mangueira ou Portela? - e sua religião - misseira, mas também rezadeira. Se o objetivo é aproximar, apresentação mais acolhedora não poderia ser feita. Clementina está entre nós. Preste atenção. Não desvie o olhar.
Filme visto no 20º Festival do Rio, em novembro de 2018.