Os caçadores de nada
por Bruno CarmeloEra uma vez Solomon, um homem idoso que passava seus dias caminhando pela natureza ao lado do mais fiel companheiro, o cachorro Dimitri. Guiados pelos conselhos de um corvo, eles transitavam por zonas decadentes, alimentando-se do que encontravam. Um dia, passaram a suspeitar de que homens da região queriam caçá-los. Mas por que eles seriam visados por inimigos? Logo Solomon, que nunca agrediu ninguém? Ou talvez o alvo fosse Dimitri? Era preciso se esconder para sobreviver.
A premissa acima, próxima da fábula, funciona como ponto de partida de A Peônia, comédia do absurdo embalada em imagens realistas pelo diretor Joaquin Breton. A região pós-apocalítica deste faroeste urbano corresponde à fronteira entre a França e a Bélgica, cenário de uma industrialização decadente, repleto de ruínas e imóveis abandonados. Os poucos homens encontrados pelo caminho são trabalhadores solitários, que frequentam o único bar da região, resistente às pressões da especulação imobiliária. Todos os personagens são homens embrutecidos, de poucas palavras.
Eles caçam, mas é difícil dizer exatamente a presa visada. Os três personagens principais são Pierre (Benoît Piret), um guarda florestal cuja missão é proibir a caça de um pássaro já extinto, o superintendente Armand (Christian Crahay), um amante dos safáris cujos alvos, em especial os elefantes, são inexistentes na Europa, e o próprio Solomon (Simon André), que se considera um humanista, e jamais dispara o seu rifle. Mas para quê caçar, então? “Para olhar para o alto”, responde. “Caço almas humanas”, ele explica em outro momento. Nossos personagens são homens fracassados, símbolos de uma virilidade descartável num cenário de precariedade social e destituído de verdadeiros laços humanos. Trata-se de figuras tragicômicas que lutam por ideais inexistentes, protegendo-se contra uma guerra invisível. São Dom Quixotes do século XXI.
Breton possui a inteligência de extrair humor das imagens tão simples quanto improváveis, gerando distanciamento pela artificialidade dos enquadramentos. Utilizando luz natural e dispondo de recursos técnicos limitados - transparecendo mesmo alguns problemas de correção de cor e captação de som direto nos espaços internos -, o filme sabe retratar o patético, o banal e o ridículo pelo posicionamento de câmera e a profundidade de campo. A perseguição secreta contra um homem idoso num espaço totalmente aberto, onde os policiais jamais poderiam passar despercebidos, e o jogo de câmera entre a ruína e um prédio de apartamentos se revelam particularmente bem-sucedidos pela noção de espaço, tempo e montagem.
Ao mesmo tempo, A Peônia desenvolve a sua narrativa em espiral: as cenas se repetem, sucedem-se fora da ordem cronológica, são mostradas em três versões diferentes. Não existe uma verdade única para o encontro trágico entre Solomon, Armand e Pierre: a cena ganha três alternativas equivalentes. Estamos no território do faz de conta, onde a história muda diante dos nossos olhos, sem a preocupação de constituir um fato. Simon André interpreta o protagonista com um tom ao mesmo tempo sonhador e naturalista, como um homem idoso na fronteira entre a sabedoria e a insanidade. Seus discursos filosóficos sobre a caça soam profundos e irrelevantes ao mesmo tempo, pelo contexto em que se encontram. Enquanto isso, uma fábrica gigantesca é implodida no horizonte, sem planos de se reerguer algo no lugar. Talvez estes homens tenham sido abandonados pelo governo e pela sociedade, sem percebê-lo. Perdidos, criam a fantasia que lhes dê uma razão de viver.