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    O Barulho da Noite
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    O Barulho da Noite

    O peso terrível do silêncio

    por Aline Pereira

    Antes de qualquer coisa, O Barulho da Noite é um ato de bravura e vitória. O filme estrelado por Emanuelle Araújo (Samantha!) foi um dos competidores do Festival de Cinema de Gramado 2023: o único longa-metragem da edição dirigido por uma mulher, Eva Pereira, e a primeira produção que colocou todo um estado, o Tocantins, no mapa do maior festival cinematográfico do Brasil. E veio com um drama que é ficcional, mas tão profundamente ancorado no mundo real que é difícil assistir sem parecer que estamos dentro de um filme de terror. 

    Em O Barulho da Noite, Emanuelle Araújo interpreta Sônia, uma mulher que vive em um pequeno sítio afastado da cidade junto com o marido, Agenor (Marcos Palmeira), e as duas filhas crianças do casal, Maria Luiza (Alícia Santana) e Ritinha (Ana Alice Dias). A vida da família é transformada terrivelmente quando Agenor traz o sobrinho, Athayde (Patrick Sampaio), para morar no sítio temporariamente, enquanto ele parte em uma viagem religiosa.  

    Assim que o casal e as crianças são apresentados, o longa estabelece uma dinâmica incômoda, que desperta uma desconfiança quase inevitável: Agenor é um homem extremamente carinhoso com as filhas, que o adoram, ao passo que Sônia é uma mãe muito dura, aparentemente distante e fria, tanto com Maria Luiza e Ritinha, quanto com Agenor, também apresentado como um companheiro presente e atencioso com a esposa. 

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    Nesse sentido, Sônia parece ser uma personagem construída para nos criar uma antipatia proposital: a princípio, é difícil entender seu comportamento – e suspeito que parte do público vai terminar de assistir ao filme ainda sem compreender muito bem de onde vem o temperamento “complicado”. E isso, por si só, talvez já seja uma mensagem importante transmitida por O Barulho da Noite. 

    A ausência de Agenor leva a um acontecimento terrível para a mãe e para as filhas e a violência doméstica se desenrola como tema central. Em 2022, foram mais de 30 mil denúncias de violência contra mulheres e mais de 8 mil de violência sexual contra crianças [Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos]. O Barulho da Noite representa essa realidade de forma dilacerante sabendo que não há necessidade de artifícios dramáticos para gerar horror - às vezes não há necessidade nem de diálogos.

    O poder do silêncio O Barulho da Noite 

    O título do longa até se explica de forma mais “didática” em um determinado momento da história, mas a sensação é de que o barulho de verdade é sempre interno e inaudível para o mundo exterior. Boa parte dos momentos mais tensos da trama, na realidade, acontece no mais profundo e sufocante silêncio – manifestado de diversas formas. Em Sônia, o olhar que parece raivoso carrega um peso trágico ancestral e que o filme escolhe não abrir completamente, mas conta com a sensibilidade do público para acolher. 

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    Nas crianças, esse silêncio é muito mais o da inocência estilhaçada, que vem junto com a confusão de não entender os porquês da vida e talvez, mais do que isso, de não saber se e como expressar. Aqui, aliás, vale uma menção mais do que à atuação da Alícia Santana e Ana Alice Dias, cuja intensidade é fato decisivo para o efeito que o filme nos causa – é certeiro o trabalho da preparação de elenco e é impressionante a realidade que duas atrizes tão pequenas conseguiram trazer a uma história que, provavelmente, não tinham a exata dimensão do que era. 

    Prefiro não entrar em detalhes aqui para não “amenizar” (se é que dá para usar essa palavra) a experiência de quem ainda vai assistir, mas basta dizer que, se, por um lado, o silêncio das mulheres é carregador de dor, a quietude de Athayde vem de uma motivação completamente diferente.  

    Em 2022, Noites Alienígenas levou o prêmio de Melhor Filme no Festival de Gramado e surpreendeu ao abrir, para quem nunca tinha tido contato, um universo completamente novo (neste caso, por exemplo, o impacto das facções criminosas na vida de jovens acreanos), O Barulho da Noite também escancara portas para as quais, em geral, se dá às costas. Há um universo dentro aquele pequeno sítio que pode até ser isolado pelas redondezas, mas está longe – e muito longe, infelizmente – de ser o único. 

    A direção apaixonada de Eva Pereira é, sem dúvidas, o que pavimenta estar descobertas: da abordagem das celebrações do Divino Espírito Santo trazidas pela interpretação de Marcos Palmeira, a ambientações que nos ajudam a mergulhar na vida daqueles personagens: falo, por exemplo, dos jantares do casal com as filhas, os sons da natureza ao redor, os hábitos diários de cuidado com o sítio, entre outros detalhes que tornam a cisão daquela família ainda mais angustiante. 

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    Em O Barulho da Noite, não existe a “vítima perfeita” 

    O ano é 2023 e os casos de abuso e violência doméstica continuam sendo frequentemente acompanhados de discursos que tentam encontrar brechas no comportamento das vítimas para justificar o mal que sofreram. Ao assistir O Barulho da Noite, um dos muitos incômodos veio da sensação de ter a certeza que, no mundo real, Sônia seria alvo fácil para isso – e é revoltante, não há outra palavra. A história dela, particularmente, apresenta um detalhe do passado que é um momento-chave para entendermos seu comportamento “estranho”, mas, na prática, ninguém que está à volta dela vê. 

    A protagonista está longe de ser uma mulher “perfeita” e a verdade é que, em muitos momentos, nos desperta sentimentos conflituosos: é fácil se irritar com as atitudes hostis dela, especialmente em relação às filhas. Durante o filme, aliás, um outro acontecimento torna essa relação ainda mais dura. A princípio, fica fácil apontar o dedo para ela, só para, alguns minutos depois, ver as fichas caindo. Sônia não precisa ser uma santa para ser digna de humanidade – ninguém precisa. 

    O Barulho da Noite é uma expressão de urgência e acho que é um daqueles filmes que têm tudo para ficar junto com você por um bom tempo porque é indigesto e toca em feridas que muita gente prefereria não ter que encarar de frente porque são profundas e dizem respeito a todo mundo. 

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