Não raiou a liberdade
por Taiani MendesQuem não matou as aulas de História no colégio bem sabe, em 13 de maio de 1888 a Princesa Isabel assinou - com uma pena dourada - a Lei Áurea. Cem anos depois a Unidos de Vila Isabel foi campeã do carnaval carioca com "Kizomba, Festa da Raça", que falava em Zumbi como influenciador da abolição, enquanto a Mangueira, vice-campeã, cantou: Será que já raiou a liberdade? Ou se foi tudo ilusão? Será que a Lei Áurea tão sonhada, há tanto tempo assinada, não foi o fim da escravidão? Hoje, dentro da realidade, onde está a liberdade?. Já no começo deste ano a Paraíso do Tuiuti revelou-se a sensação do desfile das escolas de samba ao apresentar "Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?", com samba de Claudio Russo, Moacyr Luz, Dona Zezé, Jurandir e Aníbal que clama o fim do cativeiro social.
A Última Abolição, documentário da diretora estreante Alice Gomes, não é embalado por tais sambas, mas relembra justamente desses três momentos cruciais na trajetória do negro brasileiro, contando com depoimentos de historiadores, sociólogos, juristas, pesquisadores e filósofos para a destruição de dois mitos: o da Princesa Isabel como “A Redentora” e o da democracia racial no Brasil.
Em sua maioria professores, os depoentes apresentam conteúdo que pouca gente teve na escola (apesar da Lei 11.645), explicando como a assinatura da Áurea foi na verdade o fim inevitável de todo um longo processo, agitado também por pensadores e trabalhadores negros esquecidos; cem anos depois a exclusão ainda era norma na sociedade; e em 2018, ainda que tenham ocorrido avanços, o prognóstico e a realidade estão longe do ideal. Pelo contrário. No entanto, a luta, presente desde antes da partida dos primeiros navios negreiros da África, permanece tão forte quanto.
Com Luciana Barreto como entrevistadora e Jeferson De creditado como supervisor artístico, Alice, branca, conclui um discurso convocatório aos seus semelhantes, conclamando pela voz dos especialistas que a luta contra o racismo não seja exclusiva dos negros. A Última Abolição, de fato, nada de novo oferece em termos de informação aos já engajados e vítimas diárias da marginalização motivada pela cor da pele. O berrante rosa preponderante, os desenhos manipulados com direcionamento da atenção, as fotos de Marc Ferrez, as linhas do tempo e os nomes saltando na tela são estratégias de popularização e sedução destinadas a “segurar” os mais desatentos e desinteressados, assim como são bem acessíveis as análises, tanto históricas quanto jurídicas, da injustiça racial que caracteriza a nação.
Isolados em cenários incomodamente desalentadores, com destroços, vazios e pneus, Sueli Carneiro e outros falam contra a invisibilização de guerreiros nem sempre óbvios do passado e fica no ar o desejo de saber mais sobre as mulheres que constam apenas nos registros policiais, por exemplo, ou uma entrada mais a fundo na polêmica questão da reparação da escravidão, ainda que seja compreensível a opção pelo privilégio às lamentáveis estatísticas de hoje.
Partindo da diáspora e chegando na indefinição de futuro vivenciada atualmente, o documentário abre e fecha com o pioneiro André Rebouças, engenheiro, abolicionista, filho de uma escrava com um português, nome de túnel que liga a zona sul do Rio de Janeiro ao centro/zona norte, e, portanto, símbolo bem representativo da proposta de aliança.
Racismo brasileiro for dummies - sem pejoração e sim como referência à série de publicações que explica quase tudo para todos -, A Última Abolição volta à suposta primeira abolição para mostrar que desde lá a história vem mal contada, não por acaso por brancos. Não é desta vez que isso é totalmente revertido, afinal o longa-metragem não altera as baixíssimas porcentagens a respeito dos lançamentos comerciais comandados por negros, mas há o diagnóstico, os fatos reais, o desafio e a esperança de que o filme atinja muita gente e as influencie. Você piscou e ao fim de 85 minutos no mínimo três jovens negros perderam suas vidas. Entendeu a razão?