O passado ao vivo
por Bruno CarmeloEste documentário se desenvolve num recorte temporal curioso. Ele aborda o passado, mais especificamente o ano de 1999, quando Vladimir Putin se tornou presidente da Rússia pela primeira vez. No entanto, o diretor Vitaly Mansky não aborda os fatos com o tradicional distanciamento dos eventos históricos, tirando conclusões e listando as passagens mais importantes. O cineasta recorre a imagens de arquivo, gravadas por ele mesmo, para apresentar o passo a passo da eleição como se a acompanhássemos ao vivo e ainda não soubéssemos o resultado. O espectador descobre a ascensão de Putin nas pesquisas, sua estratégia de campanha, como passou a noite de apuração, as primeiras medidas após a eleição.
O resultado imprime, portanto, a sensação de urgência típica dos filmes-denúncia interessados em captar as primeiras reações, o furo de reportagem, a política quente. Quem diria que o gélido clima russo e o impassível rosto de Putin receberiam um tratamento tão sanguíneo. Mansky explica a aproximação inusitada do tema: em 1999, ele foi convidado para registrar cada movimento de Putin, na intenção de fornecer um retrato elogioso do político. O projeto foi concluído, lançado, mas o diretor não se sentiu muito confortável com sua própria abordagem – até porque percebeu, no processo da campanha, a existência de um sujeito menos democrático do que parecia. Vinte anos depois, ele reutiliza algumas imagens e insere outras, descartadas na época, para fornecer um retrato menos elogioso do protagonista.
As Testemunhas de Putin constitui, portanto, um mea culpa do diretor, que foi aprendendo, ao longo do ofício, o poder de suas próprias imagens. “O silêncio transforma as testemunhas em cúmplices”, conclui Mansky. Ele fala de si mesmo, mas também dos outros políticos, dos colaboradores e do povo que consentiu, de certo modo, que o presidente permanecesse tanto tempo no poder, apesar dos escândalos de corrupção e dos fortes indícios de que teria encomendado a morte de seus opositores. O diretor, aliás vive no exílio atualmente, em função de ameaças. O filme serve, deste modo, como lembrete de que “se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”, como diria Desmond Tutu. O engajamento político em nome da conscientização das massas se torna evidente.
Qual é o retrato de Putin efetuado no documentário? O que o diretor teria a dizer de tão diferente, a partir das mesmas imagens? Mansky estabelece, de início, um olhar distanciado, acompanhando o recém-eleito presidente, explicando sua relação com o presidente anterior, Boris Yeltsin (que o ajudou a se eleger, para ser ignorado imediatamente após a vitória) e com o histórico soviético. De que maneira Putin estabeleceria a conexão entre o Ocidente e o Oriente, ou entre o socialismo e o capitalismo? Longe de um tratado político, o filme consegue ilustrar o imaginário de “gestor” que ajudou o presidente a se eleger. Ele já representava, na virada do milênio, a guinada conservadora da política internacional em busca de líderes autoritários, dotados de carreira política discreta e plano econômico quase inexistente.
As imagens, captadas com a câmera na mão, são tremidas, escuras, sinal de uma tecnologia digital ainda pouco desenvolvida, e de uma filmagem sem roteiro aparente. Mansky registrava os dias como quem faz um diário alheio, sem saber ao certo o que iria filmar, exceto pelas cenas provocadas por ele (o reencontro com uma professora do primário, destinado a humanizá-lo aos olhos do eleitor). O acesso à intimidade de Putin e Yeltsin, durante as festas de fim de ano e no momento exato da apuração, gera instantes preciosos, como o rosto enigmático deste último quando não é citado por Putin, ou o sorriso discreto do vencedor dentro do quartel-general, enquanto os colegas comemoram efusivamente. O espectador é convidado a reler estas imagens com as informações do presente: sabemos, agora, que no olhar modesto se escondia uma ambição de poder desmedida, e que por trás da defesa oficial da democracia, construía-se um futuro autocrático.
Depois de uma observação discreta dos homens de poder, Mansky guarda para o final a sua melhor cena, o momento em que abandona a passividade para adotar um posicionamento político claro. Quase sempre mudo por trás da câmera, o diretor finalmente faz uma pergunta para Putin que, vaidoso, aceita responder. Depois vem uma segunda pergunta, uma terceira, até se estabelecer uma entrevista improvisada com ares de interrogatório. Mansky passa a pressioná-lo, colocá-lo contra a parede a respeito de suas falas contraditórias e da decisão de restituir o hino soviético para a Rússia do século XXI. O presidente, com sua postura polida, responde a cada nova provocação, mas a fala se torna mais irritada, os gestos se tornam nervosos.
As Testemunhas de Putin se conclui com este instante impagável de um barril de pólvora prestes a explodir, um contraste evidente entre a imagem de homem de Estado e o homem por trás da máscara. Muito melhor do que demonizar Putin (algo que Michael Moore faria, por exemplo), Mansky sugere a presença de um abismo entre o discurso e a prática, tanto do cinema quanto da política. Ao invés de refletir apenas sobre um caso particular na história russa, o diretor chama atenção às novas ferramentas da política e ao nosso papel, como espectadores e cidadãos, na interrupção dos ciclos viciosos do poder.