Pinturas são eternas
por Bruno CarmeloO roteiro deste drama nem precisa fornecer muitas informações para compreendermos que é Olavi (Heikki Nousiainen). Julgando pela galeria de arte, antiga e pouco frequentada, percebemos que ele trabalha com o comércio de pinturas há muito tempo, mas os negócios não andam bem. Pela comida improvisada dentro do apartamento silencioso, deduzimos que se trata de um senhor solitário e autossuficiente. Pelo modo como ignora as ligações da filha, sabemos que têm um relacionamento distante. Banhado em luzes frias, porém cômodas, intuímos que ele gosta de viver assim. Olavi se torna uma figura tridimensional aos nossos olhos antes de pronunciar a primeira palavra.
Esta é provavelmente a maior qualidade do trabalho de direção de Klaus Härö: a construção de personagens através da estética. Partindo de um roteiro simplíssimo, com um único conflito central – o comerciante acredita ter encontrado uma obra de arte rara e inédita, mas precisa lutar para adquiri-la – o filme consegue descrever em detalhes a maneira como Olavi, sua filha e o neto lidam com a vida, o trabalho, a noção de posteridade. O quadro em questão representa não apenas um trunfo financeiro para o protagonista, mas também uma chance de se destacar no mercado em que se tornou obsoleto, e uma maneira simbólica de driblar a morte, de permanecer eterno: caso o quadro seja de fato uma pintura secreta de Ilya Repin, Olavi se tornará o homem que o descobriu, o especialista mais astuto.
Deste modo, o filme reflete sobre os valores econômicos e simbólicos do mercado da arte – afinal, sem autenticação, a bela pintura não possui valor algum. Enquanto observa a pintura de um velho com um garoto, o comerciante diz ao neto: “Para um, a vida é o futuro, para o outro, o passado”, numa interpretação que dialoga com os próprios personagens e permite discutir a efemeridade dos seres em contraste com a perenidade das obras de arte. Estas trocas são embaladas em estética elegante, com um competente trabalho de câmera deslizando lentamente rumo aos quadros, enquanto a montagem jamais acelera ou retarda as cenas um segundo além do necessário. O aguardado momento do leilão é coordenado através de uma montagem impecável, capaz de criar suspense sem o uso artificial de trilhas ou impedimentos de roteiro – e ainda reservando algumas surpresas ao espectador.
O projeto só não se torna ainda mais marcante porque alguns elementos de roteiro freiam o resultado final. O texto de Anna Heinämaa inclui a figura antagônica de um vendedor de quadros vilânico demais, além de uma conclusão melodramática muito distinta da sobriedade demonstrada até então. Mesmo assim, o diretor conduz estes momentos com precisão: vide a simbologia de uma cadeira de escritório girando até parar, em representação da morte, ou os reflexos da cidade enquanto o homem desce por um elevador panorâmico, desolado, com seu quadro na mão. Härö é capaz de se apropriar de um roteiro comum e elevá-lo a outro patamar, com ajuda da atuação tão expressiva quanto contida de Heikki Nousiainen no papel principal. Por um lado, O Último Lance pode parecer um filme restrito demais para o público médio – são poucos personagens, pouco conflitos, um universo excessivamente codificado do mercado de arte –, mas por outro, sua linha narrativa se assemelha ao melodrama universal de conciliação entre familiares desunidos.
É engraçado pensar no que Hollywood poderia fazer com o mesmo material: dá para antever as gruas subindo quando Olavi conquistasse o seu quadro, os abraços apertados entre familiares ao som de música lacrimosa, os pares do vendedor reconhecendo, enfim, o talento do marchand. Mas a produção finlandesa deixa fora de quadro tudo o que poderia ser deduzido pelo espectador. Com exceção do fraco desfecho, talvez a única concessão aos cânones do cinema comercial, o projeto oferece um estudo de personagens maduro e fascinante a partir da compra e venda de um quadro, embutindo uma surpreendente discussão religiosa sobre a representação dos ícones, que surgem da “humildade do homem diante de sua sina”. No final, os ensinamentos sobre o “Kristus” de Repin valem também para Olavi: a interpretação da imagem rara se mescla à psicologia de um personagem em fim de vida. Não é pouca coisa.