Crítica tímida ao machismo
por Sarah LyraAssim como Encontros e Desencontros, aclamado longa de Sofia Coppola que nos conduz por uma imersão cultural no Japão sob a perspectiva de dois norte-americanos, O Fim da Viagem, o Começo de Tudo também se propõe a usar uma viagem a um país estrangeiro como pano de fundo para uma busca por autoconhecimento. Apesar das semelhanças, a produção de Coppola difere em muitos aspectos desta comandada por Kiyoshi Kurosawa, principalmente no que diz respeito à qualidade do texto e construção dos personagens, características que fazem falta no aprofundamento dos dilemas vividos pela protagonista do filme japonês, Yoko (Atsuko Maeda), uma repórter itinerante de um programa de variedades da TV japonesa que visita o Uzbequistão para gravar uma reportagem.
Aqui, alguns elementos já chancelados pelo público são usados novamente. Há a óbvia barreira linguística, que sempre gera boas cenas no cinema; o choque de interações causado pela diferença de hábitos e costumes; e o embate em um nível mais íntimo e humano, geralmente responsável por impulsionar a narrativa e as ações do protagonista, já que os personagens normalmente tentam delinear sentimentos inicialmente obscuros, justificando, assim, a trajetória de crescimento. No caso de O Fim da Viagem, no entanto, o acesso à personagem principal não é tão próximo quanto se esperaria. É possível ter identificação e empatia por Yoko, mas a sensação geral é de que ela se mantém reclusa até mesmo para o espectador.
Ainda assim, Kurosawa acerta ao abordar, de maneira muito sutil, algumas temáticas mais complexas, principalmente as que envolvem a constante sensação de insegurança sentida por Yoko. Quando ela entra em um ônibus local e se dá conta de que todos os passageiros são homens, é difícil — principalmente para uma mulher — não temer pela protagonista. Kurosawa demonstra bastante controle sobre a narrativa ao criar uma atmosfera de tensão palpável, ao mesmo tempo que nos faz questionar se realmente há algo a recear. Essa incerteza é brilhantemente ilustrada quando um dos passageiros, aparentemente gentil e inofensivo, tenta engajar em uma conversa com Yoko, e o primeiro instinto da garota, que não faz a menor ideia do que foi falado, é se esquivar e dizer: "não, obrigado". Com a insistência do homem em ajudá-la, Yoko, então, sai correndo, como se estivesse sendo atacada — uma reação que, superficialmente, pode parecer exagerada, mas que representa muito do sentimento das mulheres, de maneira geral, na sociedade, independentemente do país em questão.
O machismo estrutural, inclusive, é um dos temas explorados por Kurosawa. Note como ele desperta o desconforto na cena em que um uzbequistanês falha na tentativa de pegar um peixe para a filmagem e justifica sua inaptidão (ou apenas falta de sorte) dizendo que "peixes não gostam do cheiro das mulheres". Yoko, sendo a única mulher na equipe de reportagem, vai lentamente se distanciamento daqueles que a cercam, e encontra consolo apenas na troca de mensagens de celular com o namorado e na relação estabelecida com uma cabra doméstica, confinada a um espaço solitário e obrigada a produzir leite para a família que a abriga. Não é surpresa, portanto, que toda a situação envolvendo o animal se torna muito mais dramática quando a protagonista percebe que foi enganada em seu plano de libertá-lo. Mais do que a vontade de trazer liberdade à cabra, há uma identificação muito mais profunda de Yoko com o animal, em quem enxerga suas próprias limitações.
O problema é que o motivo para a contenção vista na personalidade de Yoko, que muitas vezes se traduz em uma inaptidão social, nunca ganha camadas. Na maior parte do tempo, a trama se move exclusivamente em torno dos acontecimentos corriqueiros, é só a partir da segunda metade de projeção que notamos algum tipo de inquietação na protagonista. Todo o segmento envolvendo uma fuga da polícia local, por exemplo, soa como um recurso vazio para ganhar tempo, e nada revela sobre seus personagens ou contribui para o desenvolvimento do longa. Por isso, é uma bem-vinda surpresa descobrir que, ao contrário do que parecia até então, Yoko tem sonhos e aspirações. É uma pena que esse tipo de revelação sobre a personagem seja feita de maneira tão breve, e tão tardiamente.
Um outro acerto do longa está na fotografia proposta por Akiko Ashizawa, que aposta em planos abertos para mostrar o isolamento de Yoko na imensidão da cidade estrangeira. O Fim da Viagem, o Começo de Tudo é eficiente em imaginar os conflitos de uma jovem mulher de passagem pela Ásia Central, algumas das dificuldades que isso acarreta, e, superficialmente, suscitar um debate sobre a sociedade extremamente machista da região, ainda que não se disponha a ir tão a fundo na questão ou nos efeitos psicológicos dessa experiência em seus personagens.