A desumanização
por Bruno CarmeloUma fotografia em preto e branco de um terreno baldio. A fumaça ao fundo parece vinda de uma explosão. Em primeiro plano, um elemento estranho flutua no ar, o que depois descobrimos se tratar de um chapéu. Em off, o diretor Ghassan Halwani explica ter removido digitalmente o homem que portava o chapéu, e estava sendo espancado por dois policiais. “Você pode descrever a imagem original?”, ele pede ao fotógrafo, também em off. O artista fala sobre a expressão de dor da vítima, a brutalidade no rosto dos policiais. Enquanto isso, o espectador ainda observa o terreno baldio, vazio, e o chapéu flutuante. Jamais veremos a fotografia completa, apesar de sermos convidados a imaginar os seres humanos ali presentes.
A Memória da Guerra Civil no Líbano (ou “Apagados, a Ascensão do Invisível” no título internacional) se dedica a representar o irrepresentável: a invisibilidade de tantas pessoas desaparecidas, sequestradas e torturadas durante os anos 1980 no país árabe. Ao invés de honrar a memória dessas pessoas revelando vídeos de suas vidas e apresentando suas histórias pessoais, o cineasta privilegia a representação pela ausência. Com exceção de rápidas passagens do rosto e das mãos do diretor, não existem imagens de seres humanos em frente à câmera além de criações artísticas (fotografias 3x4, desenhos de conhecidos, uma filmagem desfocada). Tampouco existem explicações, entrevistas, narrações. Os letreiros esparsos transmitem o necessário a respeito da ausência de memória estimulada pelas autoridades contemporâneas como um fator necessário para seguir em frente.
Ao retirar o material humano, Halwani coloca o espectador diante de uma sessão árida, voluntariamente fria. Ele compartilha a história de um colega sequestrado diante de seus olhos 35 anos atrás, e o encontro com um homem desfigurado, 25 anos mais tarde, que se parecia estranhamente com o amigo de outrora. Seria a mesma pessoa? O documentário explora de maneira eficaz a brutalidade do silêncio, uma vez que as pessoas desaparecidas sequer podem ser consideradas oficialmente mortas, prejudicando o processo de luto das famílias e gerando uma nação de “imortais”, indivíduos que ainda vivem de acordo com os registros, mas não podem ser encontradas em lugar algum. Trata-se de fantasmas, de não-pessoas que em breve terão, de acordo com os cartórios, idades superiores àquela de seres humanos comuns.
Se as imagens são definidas pelo que não apresentam (os humanos, as histórias), o que de fato elas têm a oferecer durante mais de setenta minutos de projeção? O diretor explora diferentes máscaras da invisibilidade: rostos de vítimas cobertas por várias camadas de tinta sobre um muro (que o diretor pacientemente descasca, até atingir as formas dos rostos), os rostos indistintos de fotografias antigas e mal preservadas, a cidade vazia. Halwani faz o espectador sentir a falta de seres humanos, de interações, de vivências. A sensação de se viver sob uma ditadura, onde reina o imperativo da censura e o mistério sobre múltiplos crimes cometidos à luz do dia, é muito bem ilustrada pela estética da invisibilidade, pela impressão de desconforto dessas imagens. Longe do choque produzido por cadáveres ou bombas, Halwani prefere transmitir sua revolta com a normalização da barbárie, representada por um monumento considerando as vítimas como “mártires”, enquanto marca o fim das investigações oficiais por ossadas dos mortos. Ergueu-se, então, uma homenagem ao esquecimento.
A Memória da Guerra Civil no Líbano evita pormenores históricos e políticos deste país para questionar algo muito mais universal: as violações de direitos humanos a dificuldade de seguir em frente quando as guerras acabam. Como retomar a vida comum sabendo de tantas pessoas que nunca voltaram para as suas casas? Este filme perturbador discorre sobre os limites da representação diante da desumanização histórica do outro, do derrotado nas disputas civis. Esta é uma coletânea de imagens sobre a falta de imagens, sugestões humanas sobre não-humanos. O projeto efetua a tentativa incômoda de discutir a História não pelo preenchimento das lacunas com fatos e revelações, e sim pela explicitação dessas lacunas, pela denúncia de uma falta, de uma anormalidade que perseguirá a nação enquanto não puder lidar efetivamente com seus traumas.
Filme visto na 14ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, em agosto de 2019.