Logo em suas primeiras cenas, Entre Facas e Segredos já mostra a caneca do milionário Harlan de Christopher Plummer com a frase escrita: “Minha casa, minhas regras, meu café”. Por mais que pareça ingênuo, sob um olhar menos atento sobre o que o filme propõe, esse inicio dita muito bem o que este novo longa escrito e dirigido por Rian Johnson (de Star Wars – Os Últimos Jedi) quer proporcionar ao espectador: além de uma divertida e bela homenagem aos clássicos literários policiais (de Arthur Conan Doyle e, claro, a rainha Agatha Christie), o cineasta insere um sútil (mas eficaz) pano de fundo com uma temática social muito discutida na sociedade norte-americana hoje.
Usando recursos de diversos clássicos policiais de Hollywood – como O Falcão Maltês ou Disque M para Matar, por exemplo – Johnson conduz com firmeza essa trama de mistério e investigação – com um argumento que não nos traz nada novo, a principio – aqui temos a história do escritor literário de suspense Harlan Thrombey (Plummer), milionário aos seus 85 anos, após o enorme sucesso de todos os seus livros – administrados pelo filho Walt (Shannon). Após a festa de aniversário de Harlan, onde todos os familiares estavam reunidos, o escritor é encontrado morto, aparentemente por suicídio. Mas quando o detetive particular Benoit Blanc (Craig) começa a investigar o caso, ele nota que todos tinham desavenças ou segredos com Harlan, seja o sobrinho Ranson (Evans), a empresária e filha dele, Linda (Curtis), e até mesmo a enfermeira Marta (Ana de Armas).
Johnson se sai bem em apresentar cada personagem durante uma mesma conversa com o detetive Blanc – entrelaçando as mesmas perguntas que faria para todos os suspeitos, como se estivesse falando com uma pessoal só – isto é suficiente para que entendemos, ainda no primeiro ato, todas as personalidades e relações que cada um tinha com Harlan – e, evidentemente, algo que ajuda o desenrolar de cenas que poderiam soar arrastadas e expositivas, é o senso de humor – pontual e de acordo com a proposta do longa em ser uma comédia policial – mas sem deixar nenhum de seus personagens caricatos ou estapafúrdios – conseguindo inserir motivações reais em cada um – além de fazer todos eles funcionarem como elementos que compõe a discussão de fundo (mas ainda muito relevante) sobre a questão da imigração nos Estados Unidos ou até argumentar brevemente sobre meritocracia ou a hipocrisia da elite financeira.
Para isso funcionar, é merecido apontar a boa composição de Ana de Armas como a enfermeira Marta (a Joy de Blade Runner 2049 e futura Bond-Girl no próximo 007) – além de dosar bem a dramaticidade que seu papel exige, a atriz consegue se sobressair a quase bizarra característica da personagem de vomitar sempre que precisar contar mentiras – um tipo de “nariz do Pinocchio” dela – algo que só funciona pela atuação da moça e pelo tom cômico que o diretor trata a situação – mas Marta é o alicerce central da temática de fundo de Entre Facas e Segredos: de descendência Equatoriana, a jovem é bem recebida pelos Thrombley, mas até certo ponto – reparem como cada um dos familiares confunde sua naturalidade com outros países da América do Sul, em uma sútil amostra do desprezo da elite norte americana para com os imigrantes – algo que é, em certo momento, discutido abertamente, quando a família está toda reunida.
Os integrantes da família Thrombley, alias, são muito bem compostos pelo roteiro e pelo ótimo elenco – a Linda de Jamie Lee Curtis passa bem sua preocupação com o legado e a herança do falecido pai, surgindo ainda como uma mulher de personalidade forte, que não hesita em se proclamar como “dona de seu sucesso” – mesmo que se esqueça do “detalhe” de que precisou de um investimento de milhões de dólares por parte do pai para iniciar seus negócios – demonstrando a critica sobre a meritocracia – algo que o marido dela, o Richard de Don Johnson, também ajuda a representar – personagens como o Ranson de Chris Evans e o Walt de Michael Shannon também demonstram o que a falta de conquistar ou ter objetivos na vida pode influir no caráter de alguém – e o cineasta ainda dá algumas alfinetadas no comportamento fascista (ou nazista, como alguns dos parentes dizem) do filho adolescente de Walt (Jaeden Martell) – ou a necessidade de alguns de se apoiar nos outros para conseguir dinheiro – na esnobe figura composta por Toni Collete e sua filha, a Meg de Katherine Langford.
Todo esse painel de desavenças e interesses obscuros de cada personagem, faz com que a relação de amizade de Harlan com Marta funcione – mesmo que apareça em pouco tempo de tela – tais momentos mostram a ótima atuação do veterano Christopher Plummer, como um homem entristecido pelo que sua família se tornou – vendo na jovem enfermeira um único contato com alguém que parece viver no mundo real e não em cima de status e hipocrisias sobre realidades que não conhecem.
Todo esse emaranhado de temas, ainda assim, pode ser, digamos, descartado pelo espectador que queira apenas apreciar uma boa trama de investigação – Johnson se sai bem em sua homenagem a contos clássicos de detetives – como disse antes, a escritora Agatha Christie é uma base que o diretor se apropria durante quase que o tempo todo – o desenvolvimento dos personagens e os caminhos da trama são do mesmo estilo – inclusive, obviamente, até mesmo as reviravoltas – já no fim do primeiro ato, a trama já toma um novo rumo, mesmo que o final não seja assim tão surpreendente – explorando mais as hipóteses divertidas e até irônicas que o Benoit Blanc de Daniel Craig compõe – alias, é uma grata surpresa ver o atual James Bond fazendo uma criação de personagem que fica longe do agente secreto britânico – lembrando muito tanto o Sherlock Holmes de Doyle ou o Hercule Poirot de Christie, Blanc é um condutor de trama bastante simpático e inteligente – com pontuais comentários divertidos.
Se apoiando ainda em uma narrativa que consegue ser bastante ágil, mesmo que diante de muitos momentos dialogados (e talvez eu deva dizer que apenas um ou outro soam arrastados, mas nada grave), Entre Facas e Segredos é uma prova do talento de Rian Johnson, mostrando o potencial do diretor em conseguir fazer uma trama de detetive clássica moldada em elementos da nossa atualidade – algo que se fecha, como um ciclo muito bem pensado, com a última cena do filme – representando bem a posição justa do cineasta com os temas que ele aborda, além, é claro, da criação de personagens interessantes e verdadeiros.