Minha casa, minhas regras
por Francisco RussoAgatha Christie está para o suspense assim como Pelé para o futebol brasileiro. Difícil imaginar o gênero sem a Dama do Crime, tamanha sua influência na elaboração de histórias que angustiem e desafiem o espectador, rumo a um desfecho surpreendente. Em seu novo filme, o diretor Rian Johnson não só presta homenagem à autora como, ainda por cima, subverte certos clichês do meio.
Escancaradamente inspirado no clássico Assassinato no Expresso Oriente, Entre Facas e Segredos inicia com a misteriosa morte de Harlan Thrombey (Christopher Plummer, competente), o famoso autor de livros de suspense que, aos 85 anos, é encontrado morto em sua mansão. Uma semana depois, chega ao local Benoit Blanc (Daniel Craig, caprichando no sotaque), detetive com perfil publicado na revista New Yorker contratado para investigar o caso, que passa a investigar todos os que residem ou transitem pela casa. Não demora muito para Blanc notar que todos, absolutamente todos, têm um bom motivo para ter matado o autor. Ou seja, trata-se da mesma situação vivenciada no livro mais famoso escrito por Agatha Christie.
As semelhanças, entretanto, param aí. Após um preâmbulo onde cada personagem e suas motivações são apresentados, em breves entrevistas que revelam também o perfil psicológico de cada um, Rian Johnson surpreende e, já no segundo ato, desvenda por completo o que aconteceu na morte de Thrombey. A partir de então, Entre Facas e Segredos assume uma guinada inesperada, deixando de ser um filme de suspense para se assumir como de mistério, onde o público sabe a resposta que os personagens estão tão ansiosos em desvendar. Tal dinâmica, extremamente rica, é muito bem aproveitada a partir da divisão dos personagens em dois grupos: aqueles que sabem do ocorrido, e agem nos bastidores para ocultá-lo, e os que permanecem sem nada saber.
A partir de então, o filme passa a ter duas camadas em paralelo, conduzidas com habilidade por seu diretor/roteirista, sempre investindo firme no humor como meio de apresentar esta história repleta de erros, de lado a lado. O vasto e competente elenco também ajuda (bastante) nesta dinâmica, mesmo com vários dos atores tendo participações apenas esporádicas. Ainda assim, o histórico que trazem consigo ajuda bastante a compor o imaginário em torno de tais personagens, especialmente em relação a Jamie Lee Curtis e seu legado como Laurie Strode na franquia Halloween.
Com um roteiro engenhoso que explora bem a variedade de perfis dispostos na narrativa e a própria mansão como personagem, Entre Facas e Segredos é um filme bastante divertido que joga, o tempo todo, com os clichês do suspense. Quando se espera que tudo esteja esclarecido, Rian Johnson surpreende com mais uma reviravolta, esta sim a la Agatha Christie, no sentido de realocar os personagens. Vale também ressaltar o cuidado na direção de arte da própria mansão, repleta de detalhes na decoração que ajudam muito a compor o cenário necessário para esta história, e também a boa atuação de Ana de Armas, cujo olhar transmite uma ingenuidade e ternura cativantes.
Mais não deve ser dito, sob o risco de estragar a surpresa e a diversão do espectador. Aproveite!
Filme visto no Festival de Toronto, em setembro de 2019.