Os mortos e o vivo
por Taiani MendesÉ controversa a afirmação de que todo cineasta faz o mesmo filme a vida inteira, mas Rithy Panh é daqueles que não escondem sua missão. Sobrevivente do genocídio perpetrado pelo Khmer Vermelho no Camboja, o diretor dedica-se desde o início da carreira a levar para o cinema os horrores do regime que o deixou órfão e aniquilou milhões de compatriotas na década de 1970. Nos últimos anos ele fez o aclamado A Imagem que Falta, em que a tragédia era encenada com pequenos bonecos de argila plástica, e Exil, com reflexões pessoais sobre o estado de exilado. Túmulos Sem Nome surge como um possível encerramento dessa trilogia em primeira pessoa, mais uma vez rememorando o acontecido, porém dedicado ao alívio das almas dos mortos e à afirmação de vida de Panh, novamente representado pela narração de Randal Douc.
Para tratar do perambular dos espíritos incansáveis à procura de seus parentes e lares, Rithy enquadra majoritariamente de forma fixa a narrativa (que contém certa errância artística indo de depoimentos a projeções, maquetes a fotografias), restringindo o movimento aos esforços de reencontro.
O tom das palavras ditas por Douc, algumas do próprio Pahn, de Noite e Neblina e de Paul Eluárd, é ensaístico, e o profundo longo texto de início disputa a atenção do espectador com a documentação do processo de purificação do cineasta e os simbólicos rituais fúnebres cambojanos. Deve-se entender imediatamente que Túmulos Sem Nome é uma experiência impactante pelo que é dito e pelo que é mostrado, pelo que é concluído e pelo que é imaginado, pela poesia e pela história, pelo enorme sofrimento e pela indescritível beleza.
O atuar no presente está totalmente conectado ao revisitar o passado, e assim sendo o menino da capital, uma vez nos campos de arroz de onde sua família jamais retornou, não apenas persegue o contato com os espíritos perdidos, mas também colhe relatos de testemunhas do genocídio, camponeses que acompanharam e até agiram em nome da igualdade impossível que condenou os antigos moradores das cidades ao perecimento. Se não pelo trabalho extenuante e pela fome desesperadora, pelas armas. À sombra de árvores os habitantes locais dão detalhes do suplício e ensaiam explicações para a violência em massa; àrvores onde corpos eram abandonados aos montes; àrvore capturada sangrando num dos inúmeros registros cheios de significado da fotografia assinada pelo próprio Pahn e Prum Mesa, especialmente dedicada a detalhes e composições deslumbrantes.
Após produzir a obra mais acessível (inclusive por ser da Netflix) disponível para um entendimento básico do que foi o regime do Khmer Vermelho - First They Killed My Father, de Angelina Jolie -, Rithy realiza em Túmulos Sem Nome a reflexão mais madura, bonita e complexa acerca do ocorrido, acessando a dor para transformá-la em paz, voltando aos mortos para celebrar a vida.
Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.