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    Mare Nostrum
    Críticas AdoroCinema
    2,5
    Regular
    Mare Nostrum

    Alguma magia

    por Bruno Carmelo

    A cena inicial deste drama é provavelmente a melhor de todo o projeto: dois homens se encontram num terreno, sob forte chuva, para assinar um contrato de venda. Nakano (Edson Kameda), de ascendência japonesa, mostra-se mais reservado, enquanto o outro, o expansivo João (Ailton Graça), aceita o acordo sem pensar duas vezes. Existe algum mistério sobre este encontro, sobre as relações entre eles, sobre os termos do contrato, e especialmente sobre a chuva torrencial que se interrompe no momento exato em que o contrato é firmado. Existe certa magia no ar, discreta e silenciosa.

    Dali em diante, a narrativa se move quase unicamente por diálogos. A maioria das cenas apresenta dois ou três personagens conversando na entrada de casa, à mesa de jantar, sobre o sofá, na cama, dentro de um carro, sobre o terreno, perto da praia. Entre tantas falas, explicam aquilo de que o espectador precisa saber: o passado de Roberto (Silvio Guindane) e Mitsuo (Ricardo Oshiro), os problemas familiares e financeiros de cada um, os planos para o futuro. Os encontros servem para explicar ao espectador as personalidades e sugerir um andamento à história, com direito a muitos diálogos em estilo “eu sei, você também sabe”, quando um personagem fornece ao outro informações de que ambos dispõem, para informar o espectador. “Lembra aquela camiseta autografada do Sócrates, que você sempre quis?”. Sim, ele lembra.

    O recurso, além de pouco sofisticado narrativamente, chama a atenção para a artificialidade do texto e para as conveniências da trama – a mãe de Bia sempre se virou muito bem sozinha com a garota, mas assim que Roberto aparece, ele se torna indispensável para cuidar da menina durante dias; todas as mulheres do passado do pai, procuradas pelo protagonista, estão à disposição, sentadas em casa, desocupadas, esperando pela chegada deles. Os ambientes – o armazém, a casa da mãe de Roberto, o próprio terreno - são vistos pelos mesmos ângulos, como se a câmera não pudesse ir além dos enquadramentos fixos. De certo modo, o universo é acessório: os bares onde os personagens conversam estão vazios, a estrada é tranquila, não existem pessoas nas praias, nem dentro na peixaria. Aqui, o horizonte é cenário, e os diálogos são tão destacados do restante do som – os ruídos da rua e da praia, em especial – que colocam os personagens num ambiente à parte.

    Mesmo assim, alguns fatores se destacam positivamente no filme. A fotografia trabalha muito bem os tons em contraluz, e a questão do protagonismo negro e asiático se desenvolve de modo orgânico. Este é um dos raros casos em que um ator negro é escolhido para interpretar um homem qualquer, não um sujeito especificamente negro. Em outras palavras, ele não é limitado à sua etnia, não é visto como figura de exceção. No elenco, Carlos Meceni efetua um bom trabalho como Orestes, e Vera Mancini se mostra particularmente desenvolta na única cena em que aparece. Acima de tudo, é evidente o afeto pelos personagens, pelos sonhos desfeitos e pela melancolia de cada um. Os dois homens são falhos e tristes, mas o roteiro jamais julga suas escolhas passadas ou presentes.

    Mare Nostrum se conclui como uma obra crepuscular, cujo aceno à poesia – a possibilidade de poderes mágicos ligados ao terreno – jamais transforma os rumos da trama, que evita a porta aberta ao realismo fantástico. Pelo menos, a curiosa citação à fantasia atenua tantas menções a problemas financeiros e desencontros amorosos. Ainda que dentro de uma estrutura estática e pouco ambiciosa, o diretor Ricardo Elias demonstra a capacidade de observar as famílias e a classe média com empatia, porém sem miserabilismo ou idealização. O olhar cotidiano às vidas excepcionais de Roberto e Mitsuo constitui a principal singularidade do projeto.

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