Jim Caviezel ou Liam Neeson?
por Rafael FelizardoOuso dizer que, hoje, nenhuma forma de arte dialoga mais com a política do que o cinema. Se há anos pensadores discutem a existência, ou não, de uma suposta neutralidade do pensamento, talvez os últimos vinte anos tenham facilitado a resposta, período em que grande parte do produzir artístico – ainda bem – exala discursos há muito entalados.
Assim, se na primeira metade de 2023 vimos uma escolha de elenco cindir o público em A Pequena Sereia, na segunda, estamos frente a frente com mais um fenômeno do gênero – agora, do outro lado do espectro. Em julho, Som da Liberdade estreou nos cinemas norte-americanos despertando o público para uma nova controvérsia, essa, envolvendo Jim Caviezel (A Paixão de Cristo), um ex-agente dos Estados Unidos, um “baseado em fatos reais” e um diretor que talvez tenha caído no meio disso tudo de paraquedas.
Para compreendermos melhor o fenômeno Sound of Freedom (no original), precisamos entender quem é Tim Ballard, uma pessoa real em que o longa diz se basear. Pouco conhecido no Brasil, o sujeito é um ex-agente do governo estadunidense e fundador da Operation Underground Railroad (O.U.R.), uma fundação sem fins lucrativos, anti-tráfico sexual, com sede nos Estados Unidos. Ballard atribuiu à sua organização o resgate de centenas de crianças durante os anos – informação frequentemente contestada pela mídia através de alegações de falta de transparência e exagero nas histórias.
Logo, após a declaração de “baseado em uma história verdadeira” desaparecer da grande tela nos primeiros segundos de filme, Som da Liberdade inicia sua jornada. Nela, após resgatar um menino da mão de sequestradores, Tim Ballard descobre que a irmã do jovem também está sendo mantida prisioneira. Cansado da burocracia que enfrenta como funcionário do Estado, ele se demite para tentar resgatar a menina por conta própria. No processo, Tim inicia uma jornada passional ao mergulhar nos confins da selva colombiana, tentando desmontar um esquema de tráfico sexual infantil que aflige as Américas do Norte, Sul e Central.
Independentemente da história ter sido aumentada ou não, vale mencionar que a temática de Som da Liberdade é de suma importância em nossos dias. De acordo com dados da ONU, aproximadamente 1,2 milhão de crianças desaparecem por ano, grande parcela direcionada ao tráfico sexual. Entretanto, se em algum momento o diretor Alejandro Monteverde tentou fazer com que sua obra fosse de fato sobre uma mazela da sociedade e não sobre Tim Ballard, ele falhou. De certa forma, Som da Liberdade parece um filme de super-herói de baixo investimento, em que entre superenquadramentos em rostos lacrimosos, frases de efeito e coadjuvantes descartáveis, o personagem de Caviezel acaba ganhando excessivamente mais destaque do que qualquer outro elemento que se move, deixando o resto da trama vazia.
Além disso, se durante as entrevistas pré-filme – e também nos créditos do longa – Ballard afirmou que sua família foi de extrema importância para conseguir sobreviver ao trabalho, levando em consideração o enredo, não parece. Som da Liberdade infelizmente desperdiça o talento da atriz Mira Sorvino, que com pouquíssimo tempo de tela parece perdida como a unidimensional esposa do protagonista. Vale ressaltar que, em 1996, Sorvino foi vencedora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por seu papel em Poderosa Afrodite – fato que já faz valer na obra um melhor recorte para sua personagem.
Da mesma forma, há também um descarte incômodo em relação às narrativas das crianças que são resgatadas do tráfico. A sensação que fica é que Monteverde parece ter dificuldade de administrar momentos de maior intensidade emocional da trama, fugindo do desenvolvimento de seus dramas ao optar por se esconder atrás de uma trilha sonora emotivamente artificial, soando cansativa.
Em um de seus maiores acertos, Som da Liberdade apresenta uma bonita cinematografia. Sem grandes blockbusters na carreira, o espanhol Gorka Gómez Andreu fez um bom trabalho ao compor a fotografia do filme, apostando em tons mais sóbrios que combinam com o ímpeto da narrativa. As movimentações de câmera junto à edição mais contida também operam de maneira agradável, permitindo que as cenas se desenvolvam em tomadas mais longas que mantêm a imersão.
Aliás, para quem, como eu, entrou no cinema esperando um filme de ação aos moldes de Busca Implacável, uma surpresa pode ter ocorrido. Apesar de ter muitas semelhanças com a franquia de Liam Neeson, Som da Liberdade em momento algum nos afoga naquelas saturadas cenas de perseguição, mantendo, mesmo em seus momentos finais, a compostura ao não flertar com incidentes inverossímeis. Em outras palavras, – para minha felicidade – o longa não conta com lutas coreografadas, trocas de tiro ou mesmo explosões.
Podemos afirmar que Som da Liberdade se beneficiou da polêmica em que se envolveu. A produção não é a tragédia que alguns pregam – tampouco o salvador de lares que outros colocam. A história de Tim Ballard se encontra em um apático meio termo onde, se não fosse pelas controvérsias, já teria caído no esquecimento.
Desta forma, os pontos mais interessantes do filme acontecem exatamente fora das telas, onde presenciamos um título independente, criado sob financiamento coletivo, derrotar grandes nomes do audiovisual nas bilheterias, arrecadando mais de dez vezes o valor de seu orçamento. Para quem gosta de um Davi x Golias, é um prato cheio.
Acusações de censura, de boicote, salas de cinema vazias que mostram todos os ingressos vendidos e mais também embalam o furacão Som da Liberdade, tornando, como dito acima, o longa-metragem mais atraente pelo que se tornou do que pelo que realmente é.
Por fim, vale destacar que a experiência completa ainda entrega um elenco em parte renomado, apresentando nomes como Bill Camp, Kurt Fuller e José Zuniga apenas para atrelá-los a personagens arquetipicamente datados.