Um mergulho nas trevas do tempo
por Renato FurtadoO fogo, a chama. Primeiro como o alimento de uma pequena lâmpada, depois como a causa destruidora de uma bandeira e, por fim, a revolução materializada em combustões e explosões violentas. E se tudo está destinado a queimar, a virar cinzas dentro do fluxo do tempo, por que lutar? Por que inssurgir-se contra as injustiças ao invés de permitir que o niilismo, a sedutora negação de tudo, faça o seu trabalho? Ou, por outro lado, por que não lançar-se ao extremo, já que os incêndios engolirão a todos, mais cedo ou mais tarde? Este é, sem dúvidas, um dilema ardente, trocadilho à parte, impasse interior, ideológico e psicológico que guia as ações dos protagonistas do pesado e lúgubre Os Sonâmbulos.
A luz, potencializada pelo filtro dourado de uma direção de fotografia rigorosa e muito hábil, não possui espaço algum no mundo, ao menos não na perspectiva do diretor e roteirista Tiago Mata Machado. Basta olhar, é claro, para as notícias: tragédias sucedem tragédias ao redor do planeta, sejam elas de ordem ambiental, política, social e/ou humanitária. Tal catálogo de más novas é razão boa o bastante para justificar o que o próprio cineasta considera ser "um mergulho nas trevas do tempo". Entretanto, apesar de estar em consonância com o compêndio de atrocidades que o cerca, Mata Machado não parece propor nada além do mero ato de deleitar-se com as sensações causadas pelas agruras e desgraças modernas.
Acompanhamos esta verdadeira via crúcis através dos passos de L. (Clara Choveaux) e Ruiz (Rômulo Braga), dois amantes cujo afeto compartilhado é diluído pelo desespero, pela ausência de qualquer tipo de crença no amanhã: são dois niilistas — personagens, aliás, interpretados com toda a potência por dois atores extremamente competentes — que construíram um relacionamento com base na destruição mútua e em um constante estado de combate e de agressividade, pontuado, aqui e ali, por instantes de distanciada ternura, que penetra a escuridão como a luz ímpar que ocasionalmente banha Os Sonâmbulos. Mas para além de figuras privadas, eles também são personalidades, de certo modo, públicas.
É este descompasso entre a vida interior dos protagonistas e suas jornadas revolucionárias que melhor simboliza a irregularidade do filme de Mata Machado. Quando vemos L. e Ruiz batalhando um pelo outro, ainda que aos seus próprios modos aniquilantes, sufocantes e violentos, este drama quase experimental tangencia sua mais interessante investigação: analisar como, e se, são possíveis os afetos em tempos sombrios? Contudo, quando os vemos, por outro lado, como peças de uma engrenagem maior — partes da máquina de uma sociedade secreta de guerrilheiros montada para destituir um governo autoritário —, a potência dá lugar a um malsucedido entrelaçamento de tramas e motivações.
Logo, são apresentados outros personagens cujos discursos — todos os diálogos (ou monólogos, melhor dizendo) escritos por Mata Machado e Francis Vogner dos Reis, que também atua no longa soam como tratados políticos e filosóficos, para o bem e para o mal — só fazem evidenciar o vazio que há por baixo da complexa superfície de Os Sonâmbulos. Decerto que todas as questões colocadas são relevantes, e que algumas delas são para lá de instigantes — genial e disruptora é, por exemplo, a ideia de que os fascismos só podem ser combatidos por aqueles que compreendem alguma forma de totalitarismo —, mas como é que eles apoiam ou elevam a trajetória de L. e Ruiz?
Esta é uma pergunta que surge, de maneira mais recorrente do que o esperado, durante a projeção do filme. A intrincada montagem não contribui para aplacar a sensação de confusão: quanto mais a edição se esforça para evitar a causalidade e a linearidade, mais somos afastados da narrativa, que acumula camadas de hermetismo ao passo em que perde o interesse na nociva e tóxica relação de seus dois personagens principais. Abundam tramas paralelas, que parecem tentar dar conta do turbilhão político e social que vêm varrendo o Ocidente nestes anos 2010, e Os Sonâmbulos perde de vista, por completo, aquilo que o destacava em primeiro lugar.
Toda a potencialidade inscrita na premissa alavanca aquela que é a melhor sequência de todo o filme: uma cena dividida por L. e Ruiz naquele que aparenta ser o apartamento do casal, ou o apartamento clandestino em que este casal clandestino costuma se encontrar, onde cortam, recortam e colam figuras de políticos brasileiros de jornais, revistas e outras publicações. Remetendo talvez aos delírios pictóricos de um Goya, de um James Ensor ou até mesmo de um Kafka, os dois protagonistas remixam as imagens — misturando rostos, olhos, bocas e narizes dos parlamentares nacionais — para replicar as ações destes artistas, denunciando, assim, o aspecto grotesco da realidade através de suas máscaras fantasmagóricas.
Esta impressionante e muito fortuita construção é prejudicada, por outro lado, pelo exercício de violência oposto, quando, já no fim, a câmera fragmenta os corpos de L. e Ruiz, presos em uma dança atroz de agressões físicas meramente chocantes. É evidente que o espectador falhará miseravelmente ao esperar qualquer final minimamente "agradável" para esta trama. Todavia, Mata Machado, à la Lars von Trier, parece esgotar a profundidade que havia entre seus dois personagens principais ao eleger como ferramenta de abordagem uma sensibilidade quase estoica, mas definitivamente misantrópica que, apesar de ressoar o restante de Os Sonâmbulos, só faz simplificar a narrativa apresentada anteriormente.
E se por um lado soa como uma derivação latino-americana dos títulos do provocador cineasta dinamarquês, ascotumado a causar debandadas de público com obras como Anticristo e A Casa que Jack Construiu, Os Sonâmbulos também parece aspirar à causa propagada por Clube da Luta. Porém, desmascarar as hipocrisias do sistema capitalista, que tornou-se um "especialista em gerenciamento de crises", como diz Ruiz, por via do bombardeamento guerrilheiro já foi feito antes e melhor pelo filme dirigido por David Fincher. Em Os Sonâmbulos, Mata Machado levanta questionamentos políticos importantes e aponta algumas das maiores crueldades sistêmicas, mas seu flerte com o Nada é mais pecado que trunfo.
Filme visto na 22ª Mostra de Tiradentes, em janeiro de 2019.