Vida e morte do operário
por Bruno CarmeloComo é bom encontrar, em plena era do cinema digital, um filme com a textura granulada da película 35mm! A produção de Singapura aposta numa construção das imagens à moda antiga: as luzes em neon das fábricas e os cenários insalubres dos alojamentos dos trabalhadores são utilizados para gerar um aspecto sujo, orgânico, áspero, ao invés da textura lisa do digital 4k. Uma Terra Imaginada utiliza a estética bruta para abordar relações de poder contemporâneas, ainda que herdeiras de uma estrutura existente há séculos.
O roteiro projeto busca trazer uma sensação ao mesmo tempo violenta e contida, como o grito preso na garganta de Wang (Xiaoyi Liu), operário chinês de uma construtora singapuriana. Como outros imigrantes, ele aceita um salário irrisório, em condições precárias, num país onde não consegue se comunicar. Wang não possui muitos amigos, amores nem mesmo familiares próximos. Quando desaparece, certo dia, ninguém se dá conta. “Mas e se ele tiver morrido?”, questiona o investigador Lok (Peter Yu), ao que alguém responde: “Quem se importa?”. De fato, não há ninguém para reclamar a ausência de Wang. É deste anonimato nas relações de trabalho que trata o projeto.
O roteiro aborda de maneira original a questão da identidade: para além da nacionalidade e da língua, os operários chineses, indianos e paquistaneses sentem que estão trabalhando num território fictício, reproduzindo ações sem propósito. O trabalho braçal consiste em deslocar terra de países vizinhos (Malásia, Tailândia, Vietnã) para a costa de Singapura, aterrando a região e permitindo novas construções civis. A terra sobre a qual caminham, portanto, também é estrangeira e anônima, como aponta Mindy (Yue Guo), a funcionária de uma lan house. A tarefa destes homens é infinita: sempre haverá mais terra para deslocar, e as dívidas com os patrões impedem o abandono do cargo. Em outras palavras, trata-se de escravos condenados a repetir o trabalho ingrato até o fim de seus dias.
Uma Terra Imaginada constitui uma excelente representação deste panorama socioeconômico. Ele se enfraquece um pouco quando investe na vertente do suspense, através da investigação de Lok. Os delírios entre o real e virtual, envolvendo policiais e os interlocutores invisíveis da lan house, ameaçam desviar o discurso político para os prazeres mais epidérmicos do cinema de gênero. A questão da insônia, que une o investigador e o investigado, também possui mais interesse enquanto reflexo de uma classe trabalhadora exausta, transformada em máquina, do que como porta de entrada para a possibilidade de pistas falsas no roteiro.
Em outras palavras, sempre que se foca no elemento humano, o diretor Siew Hua Yeo fornece momentos memoráveis, em especial as belíssimas cenas de festa entre os operários, quando não precisam de palavras para se compreender. Felizmente, estes instantes são majoritários em relação à busca policial. Por fim, teremos conhecido pouco de Wang, por uma razão clara: este personagem era inacessível, hermético, impossibilitado de se expressar. Mesmo assim, o cineasta faz questão de dizer, pela insistência dos close-ups na expressão sofrida do personagem, que havia no corpo silenciado uma subjetividade complexa, aniquilada pelo trabalho massificante.
Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.