Tambor de todos os ritmos
por João Vítor FigueiraO desabrochar de um filme como La Flor é um fenômeno raro. Em mais de um século de cinema, este longa-metragem é comparável a poucas coisas já realizadas na sétima arte. Em uma era em que um dos formatos de audiovisuais mais consumidos globalmente são curtos recortes de vídeos instantâneos e verticais em redes sociais, uma obra de ostentosas 14 horas de duração é quase uma anomalia. Trata-se de um longa-metragem para ser experienciado, um verdadeiro acontecimento. Um filme que é forte justamente por exigir um nível olímpico de entrega do público na medida em que é audacioso o suficiente para ser bem sucedido em alcançar suas hercúleas ambições.
A fim de curiosidade, La Flor é o mais extenso filme já feito na Argentina e, provavelmente, o filme narrativo (ou seja, excluindo os documentários e filmes experimentais) mais longo de todos os tempos. O projeto que carrega o selo da produtora El Pampero Cine foi concebido em 2008, precisou de 10 anos para ser finalizado e surgiu depois que o diretor Mariano Llinás (Balnearios) foi alçado ao status de herói do cinema independente argentino com o lançamento de Historias Extraordinarias (2008), que tem bons 245 minutos em seu corte final.
De antemão, vale dizer que La Flor não é exitoso em tudo que ambiciona fazer. Conceitualmente, o longa-metragem colossal sabe usar o tempo a seu favor — o que é um dos melhores elogios que podem ser feitos para uma produção que tem uma extensão mais de quatro vezes maior do que o corte original de O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (2003) —, mas o filme não consegue escapar dos momentos de tédio. Em seu terço inicial, o longa também apresenta uma técnica de direção um tanto derivativa e não fica claro o que naquelas construções visuais é mero estilo e o que poderia denotar uma demonstração de limitações mal contornadas.
As ressalvas sobre o que não dá certo, entretanto, encolhem consideravelmente diante da brilhantismo dos acertos, frutos de uma maquinação fílmica única, que causam um deslumbre de perceber que, é por ser rigorosamente fiel às suas regras e escolhas conceituais que La Flor engrena tão bem na maior parte de suas 14 horas de duração. Mais do que um capricho ou vaidade (embora Llinás não esconda ser um diretor vaidoso pela forma como aparece diante das câmeras), La Flor tem um comentário a fazer sobre as naturezas do tempo e do cinema.
Dividido em três partes que abarcam seis episódios diferentes, este épico é o mais próximo que um filme narrativo tradicional pode chegar para dar ao espectador uma experiência análoga ao jogo de videogame em mundo aberto. Em função da dilatada temporalidade, há a possibilidade de apreciar cada novo vetor que surge para guiar o filme por situações cada vez mais imprevisíveis. Llinás por muitas deleita-se criando filmes dentro do filme e instigando um gosto pelas surpresas e um desejo por novas e mais novas bifurcações dentro da trama. Por La Flor ser um filme sobre possibilidades, Llinás também usa a falta de limites impostos por um grande estúdio ou pretensão comercial e usa códigos do cinema de autor para subverter o cinema de gênero e vice-versa. Sendo assim, a obra é capaz de transitar por territórios que vão do terror de baixo orçamento ao suspense de espionagem de escala global, passando pelo melodrama musical, pelo cinema mudo, ficção científica, cinema experimental, drama de personagens e comédias do absurdo, da paródia e da autoconsciência.
Em outra demonstração de ousadia, cinco dos seis episódios do filme são peculiares o bastante para não contar com desfecho (no caso dos episódios de 1 a 4) ou com início (no caso do episódio 6).Tais recursos não fazem falta, uma vez que o cinema de La Flor não é sobre a moral final de suas histórias, mas sobre aproveitar a longa jornada por este melindroso território e exultar a cada nova curva, a cada novo labirinto. Quando isso funciona primorosamente bem, como no episódio 3, a impressão que se tem é que sequer faria mal se o longa-metragem fosse ainda mais extenso.
Quem dá tônus e emoção ao filme são as atrizes do coletivo teatral Piel de Lava: Pilar Gamboa, Laura Paredes, Elisa Carricajo e Valeria Correa. As artistas vivem diferentes personagens nas diferentes histórias do longa-metragem. "O filme foi feito com elas e, de uma certa maneira, é sobre elas”, explica Llinás diante da câmera no prólogo do filme. Como em Boyhood - Da Infância à Juventude, a imperiosa marcha do tempo e sua ação na pele, no corpo, nas experiências e no talento das atrizes é uma outra cartografia do filme, à parte dos enredos principais. Da mesma maneira que Llinás não esconde que ama demais suas próprias ideias neste filme (para o mal e para o bem), o diretor não esconde a paixão por suas musas. E é muito fácil desenvolver o mesmo sentimento por elas. Chame de “Síndrome de Estocolmo”, se quiser, desde que fique claro que o que sequestra a atenção são os talentos artísticos de cada uma delas ao longo do extenso tempo em que suas presenças nos marcam a retina (e não a duração exorbitante do filme em si).
Comum na maior parte dos episódios, o estilo de direção de Llinás é marcado pela ostensiva exploração das possibilidades da manipulação do foco na câmera. Com isso, o cineasta destaca as feições das atrizes e usa o desfoque como um instrumento de suspense. Outras de suas características são os planos que não dão muita margem no quadro para nada além das personagens. Há também muitos quadros com múltiplos personagens milimetricamente posicionados em cena à la Wes Anderson. Os recursos são proveitosos em algumas situações, mas repetitivos em outros.
"O tipo de filme que os americanos sabiam fazer de olhos fechados, mas agora não sabem mais", nas palavras do diretor-ator-apresentador, é o que se vê no primeiro episódio de La Flor. Neste capítulo, as atrizes vivem um grupo de pesquisadoras de um laboratório que recebem, à contragosto, a múmia de uma misteriosa rainha da América pré-colombiana. Com ares de filme B de terror, o filme tem um toque de tosqueira visual digna de Ed Wood pela maneira como a múmia é apresentada, incluindo o efeito especial low budget para mostrar o lado sobrenatural da entidade. É do lado camp que brota o humor deste segmento, que antecipa o bom trabalho de atuação que será demonstrado com ainda mais vigor nos episódios seguintes.
No episódio 1, Paredes, Carricaj e Correa interpretam as administradoras de um isolado laboratório que serão afetadas pela maldição da múmia. Gamboa aparece como a especialista em assuntos sobrenaturais que vai livrar as demais mulheres da opressão mental. De todos os segmentos que não tem um final propriamente dito, este é o que a ruptura narrativa tem o resultado mais frustrante, uma vez que, apesar das boas atuações (especialmente a de Gamboa), o episódio I é bem menos original do que os outros capítulos do filme.
Com um humor delicadamente autoirônico, paródia da estética das telenovelas e muita música, o segundo segmento é um drama musical com divertida pieguice assumida. Aqui a narração externa ganha espaço, anunciando uma tendência dos próximos segmentos. Na trama, um dupla de cantores pop de sucesso que formam o duo Siempreverde terminam um relacionamento romântico de forma traumática. Enquanto Victoria (Gamboa) ainda tem muitos ressentimentos, Ricky (Héctor Díaz) engatou uma nova parceria musical com outra cantora mais nova (Correa). A aura de comédia não intencional segue presente em função cafonice das canções interpretadas, mas o grande destaque mesmo ė a presença de cena de Gamboa, que atua com um vigor e paixão palpáveis, em especial na cena da discussão pelo telefone e nas performances musicais. Outro ponto interessante é o flashback para o início do relacionamento entre Victoria e Ricky, no qual os dois despem suas memórias. O roteiro é muito inteligente ao narrar o que os dois hesitam, reconsideram ou revelam quando olham para o passado. Há também um certo fatalismo romântico almodovariano e uma ênfase nas flexões vocais como uma maneira de trabalhar as emoções, não só quando se canta, obviamente, mas também nos relatos.
Sem sombras de dúvidas o melhor segmento de La Flor é o terceiro, que tem quase seis horas de duração e traz um excelente exercício de engenharia narrativa. Com uma trama divida em 10 capítulos, que passa por três continentes, conta com diálogos em ao menos quatro idiomas e é ambientada em múltiplos países, esta parte se apresenta como um thriller psicológico de espionagem. Gamboa, Paredes, Carricajo e Correa interpretam um grupo de espiãs de elite que raptam um cientista sueco em uma missão ordenada pelo austero e frio Casterman, chefe de um clã de agentes secretos. Entretanto, a tal missão era uma emboscada. Como em A Origem, filme no qual Leonardo DiCaprio sempre entra em uma nova camada de sonho, o espectador descobre filmes e mais filmes dentro deste segmento.
Llinás consegue um resultado tão bom neste segmento justamente por usar o tempo ao seu favor, dedicando longas e bem escritas explicações para as histórias de origem de cada uma das personagens da Piel de Lava. Além disso, as sub-histórias dão as chances definitivas para as atrizes ocuparem os holofotes com uma centralidade importantíssima para a criação de uma empatia com as personagens. Agora Gamboa é uma espiã muda que atua como agente dupla entre Londres e Berlim; Carricajo é uma soviética viajando pela Rússia em busca de um espião infiltrado; Correa é uma ex-guerrilheira com complexo de Joana D'Arc; e Paredes vive uma história de amor com outro espião de quem finge ser o marido em múltiplas missões (que é um dos momentos mais bonitos do filme).
A narração neste segmento segue um fluxo poético inspiradíssimo. São construídas situações que puxam textos incríveis sobre a posição das constelações no céu e a maneira individualista de ver o mundo, um texto extremamente meticuloso sobre o que leva um espião a mudar de lado e outro assombrosamente intenso sobre a cor branca da neve siberiana. Llinás também é capaz de se soltar na direção e, embora passe longe de abandonar seus vícios de linguagem cinematográfica, explora outros enquadramentos e mise-en-scenes.
No episódio IV, La Flor assume uma dimensão ainda mais ousada. Se fosse um filme isolado, estaria apto a galgar por um espaço no panteão do cinema metalinguístico junto com A Noite Americana. (O filme também carrega similaridades com Adaptação, pela maneira como retrata a angústia de um roteirista em um vácuo mental.)
Nesta parte, Llinás, interpretado por outro ator, dramatiza uma história sobre um diretor em crise criativa, incapaz de trazer uma resposta satisfatória para suas atrizes sobre o rumo que o filme está tomando. Na trama, "Eu não sei" se torna quase um mantra para o cineasta em um momento em que as atrizes principais interpretam versões delas mesmas, passam a questionar os métodos do diretor e o confrontam com o fato de que o filme está sendo rodado há anos sem que haja previsão para conclusão das filmagens.
A metalinguagem do roteiro transparece também em termos técnicos. Nunca se sabe quando o que está sendo projetado na tela provém da câmera diegética ou da câmera não-diegética. É como se a direção do episódio IV estivesse sempre passando das mãos de Llinás para seu próprio alter-ego.
Pressionado, o alter-ego do diretor foge do set com uma equipe técnica formada apenas por homens. Ele decide se concentrar em filmar apenas árvores enquanto tenta entender qual a melhor maneira de estruturar seu trabalho. Neste segmento, muitos mecanismos do cinema narrativo são colocados em pauta pelo roteiro e há um ótimo monólogo sobre a construção de sentido de um quadro a partir da figura humana. Quando diretor desaparece, o segmento dá uma nova guinada e se torna uma história envolvendo bruxas, que são as próprias atrizes do filme dentro do filme. Daí em diante, se inicia uma investigação meticulosa de um detetive que chega dos Estados Unidos e começa uma jornada na busca pelo cineasta que sumiu e de sua equipe que enlouqueceu.
Os dois últimos capítulos de La Flor são inferiores aos precedentes. Nas horas finais do longa, ambição e pretensiosismo quase se confundem. O episódio V, que não tem nenhuma trilha de áudio na maior parte de sua extensão, é uma refilmagem pouco inspirada e mal atuada de Um Dia no Campo, de Jean Renoir. É o único segmento do filme sem as atrizes da Piel de Lava (ah, e como elas fazem falta). O sexto e final episódio é uma divagação abstrata com base em um poema de Sarah S. Evans sobre o reencontro com a liberdade de uma mulher que fora capturada por indígenas. O principal destaque deste segmento pouco entusiasmante é a estética visual que opta por filtrar a imagem de maneira rústica. Apesar dos pesares, os capítulos V e VI ao menos testemunham uma buscar por novas ideiais e, mesmo sem acrescentar tanta qualidada à obra como um todo, mantém intacto o deslumbre pelo que foi visto anteriormente.
Quando o episódio VI termina, Llinás revela, na última tomada, o artifício de uma espécie de câmera escura usada na captura daquelas imagens e dá por encerrada a dramaturgia, filmando os afetuosos abraços do elenco e equipe após o faraônico feito. De repente, somos levados a refletir sobre a dimensão daquele esforço, sobre como La Flor é uma demonstração de força de suas atrizes, mas também uma exaltação da arte dramática, da versatilidade e dedicação necessárias para se atingir, enquanto ator, alguma transcendência. La Flor também versa sobre o processo cinematográfico como uma ode à paixão, uma aventura quixotesca que exalta a soberania das ideias, a soberania do desejo de fazer cinema em detrimento de todas as pressões comerciais e estéticas que o mercado impõe.
Além disso, a inegável vertente progressista do projeto precisa ser ressaltada na medida em que La Flor oferece a essas mulheres a oportunidade de se impor em um cenário cinematográfico que ainda está longe da igualdade de gênero. Dedicar mais de 10 horas a um filme sobre mulheres em papéis não-estereotipados ou objetificáveis é quase um ato político.
Sobre este amor que exala da câmera de Llinás pelas atrizes da companhia La Piel de Lava, há uma sequência lindíssima dotada de uma inebriante bruma poética, na qual o diretor transforma cenas dos bastidores do episódio IV em algo grandioso. Seria ofensivo se referir como “making of” o que na verdade é um elogio às singelezas que dão sentido à vida, um lembrete de que o tempo, como cantou Caetano Veloso, é um senhor tão bonito.
Nestes breves momentos que não duram nem 20 minutos (tempo quase ínfimo perto das 14 horas), o diretor mostra suas atrizes em momentos de espontaneidade. Embora nem sempre seja possível dizer quando elas estão ou não atuando no sentido estrito do termo, há sempre uma relação envolvente delas com a câmera. Há também uma sensualidade (no sentido de se inclinar para o deleite dos sentidos) em todas aquelas imagens. A hipnose pela beleza que Terrence Malick tanto buscou em seus filmes recentes é alcançada nestes quadros contemplativos. A atmosfera é completa com a univitelina ligação das sequências com a melancolia mística da trilha sonora, onde Llinás utiliza o segundo movimento do Concerto para piano em sol maior, de Maurice Ravel. Do puro alumbramento cinematográfico do mais exótico trecho de um filme tão idiossincrático brota uma sequência que é quase um sonho. E que ironia pensar que a produtora Laura Citarella tenha dito que não faz mal se o espectador sucumbir a um breve cochilo durante a projeção de La Flor.
Por fim, depois de passar tanto tempo assistindo a um filme o que vai prevalecer na memória são sensações como as despertadas por este trecho e a consciência de ter testemunhado uma obra que, mesmo com certas falhas, é magnífica. Como diz uma frase apócrifa atribuída a Orson Welles, um dos diretores que melhor personifica o ideal de ambição criativa, "O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de sonho."
Filme visto na 12ª CineBH - Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte, entre agosto e setembro de 2018.