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    A Balsa
    Críticas AdoroCinema
    2,5
    Regular
    A Balsa

    Os exóticos ratos de laboratório

    por Bruno Carmelo

    A princípio, é difícil acreditar na veracidade deste documentário. Primeiro, porque A Balsa parte de uma premissa improvável: um antropólogo, depois de ser sequestrado por terroristas num avião, desenvolve a ideia de manter onze pessoas enclausuradas numa pequena balsa, no meio do Oceano Atlântico, durante três meses para observar como se comportam em situações de tensão. Descontente com as amizades plácidas entre os participantes, começa a estimular brigas e relações sexuais para enriquecer seu material de pesquisa.

    Segundo, o filme pode soar como mockumentary devido às escolhas de direção. A narração em off, com leituras do diário do antropólogo Santiago Genovés, adota um tom afetado para aumentar o suspense. A trilha sonora grandiosa não cessa em momento algum, tentando transformar a experiência numa aventura de suspense. Os avisos no começo, lineares, preparam o espectador para um resultado controverso, potencialmente recheado de violência e sexo. A predileção pelo sensacionalismo transforma o projeto em algo muito próximo da ficção.

    Ao menos, por trás de tamanha sedução estética, existem os fatos, suficientemente interessantes por si próprios. O experimento foi muito menos bombástico do que se anunciava, com pequenas brigas e algumas leituras gerais sobre o comportamento humano. A participação dos membros da tripulação, hoje idosos, rememorando os fatos numa réplica da balsa em estúdio produz um efeito curioso, ao mesmo tempo imersivo e distancimento, por representar uma versão semelhante da embarcação, ainda que presente numa locação. Aos poucos, descobre-se os pontos de vista diferentes, a admiração ou crítica à iniciativa de Genovés. Partindo de uma leitura unívoca, guiada apenas pelas palavras do pesquisador, o documentário se abre a interpretações dissonantes, algo essencial para compreender a relevância histórica da empreitada.

    No entanto, o diretor Marcus Lindeen permanece refém de seu tema. Os tripulantes que não comparecem às entrevistas, por terem morrido ou não dominarem bem o inglês, são praticamente cortados da montagem de materiais de arquivo, como se não existissem. O padre a bordo não exerceu influência alguma? De que serviu o segundo acadêmico durante a viagem? Ao mesmo tempo, o cineasta privilegia a participação de alguns personagens por sua eloquência, desequilibrando as entrevistas em termos de representatividade. As conclusões do antropólogo, essenciais ao filme, são desprezadas – cita-se apenas que estão presentes num livro, cabendo ao espectador buscá-las por conta própria.

    A iniciativa de Genovés jamais é questionada pelos limites éticos, deontológicos, ou pelo possível sadismo da aventura. Se os procedimentos metodológicos do pesquisador foram contestáveis, os de Lindeen se mostram igualmente falhos, por expor apenas uma seleção restrita de pontos de vista ao invés de preencher as lacunas com conclusões próprias. A Balsa impressiona mais pela premissa do que pela conclusão: passados 101 dias, ninguém se matou, nenhuma grande briga foi registrada, e os questionários antropológicos foram interrompidos por não renderem os frutos esperados. A estética do impacto cede espaço a certa melancolia, quando o filme convenientemente se interrompe, talvez ciente de sua própria impotência.

    Mesmo separados por 43 anos na história, Genovés e Lindeen partem de uma vontade evidente, um vigor impressionante, no entanto, resolverem a contento suas questões: por que aquele grupo seria representativo de toda a sociedade? Os conflitos estimulados pelo pesquisador possuem a mesma validade científica daqueles surgidos naturalmente pela convivência? A fama de “Barco do Sexo”, escancarada na mídia sensacionalista, realmente prejudicou a reputação da faculdade e do antropólogo? A consequência na vida dos participantes foi tão ínfima quanto parece? Talvez as respostas se encontrem apenas no livro publicado ao término da viagem – ou numa pesquisa acadêmica, embasada e aprofundada, com dados e rigor científico.

    Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.

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