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    Ilha
    Críticas AdoroCinema
    2,5
    Regular
    Ilha

    As falhas adoráveis

    por Bruno Carmelo

    Café com Canela, primeiro longa-metragem da dupla formada por Glenda Nicácio e Ary Rosa, teve uma recepção mista por parte da imprensa: enquanto alguns jornalistas e críticos apontavam inúmeros problemas no roteiro e na execução, outros diziam que, apesar destes mesmos problemas, o filme era encantador. Outros ainda sugeriam que o resultado era forte graças a estes problemas. Seriam marcas de cineastas corajosos, sem medo de se arriscar, com grande vigor e vontade de abraçar ao mesmo tempo a cinefilia, as minorias sociais, uma política de confronto e outra de conciliação.

    Ilha deve suscitar respostas semelhantes. É preciso admitir que os diretores são destemidos em sua condução narrativa: o filme parte de uma premissa absurda, com diversos buracos e incongruências, desenvolvendo-a então através de metáforas óbvias (“Força, mulher!”) e núcleos narrativos em excesso. Em outras palavras, o conjunto é um caos. Diante dos obstáculos – de produção ou lógica – os diretores não buscam atalhos nem diminuem o ritmo. Pelo contrário: a dupla enfia o pé no acelerador e fornece um resultado extremo, para o bem ou para o mal. Em diversos momentos, estamos próximos do ridículo. Em outros casos, contemplamos um estado de graça.

    Este jogo parte do sequestro improvável de um diretor de cinema famoso, Henrique (Aldri Anunciação) por um jovem morador de Ilha Grande, Emerson (Renan Motta). Sentindo-se pouco representado, este exige que o cineasta faça um filme sobre a sua vida. Parte considerável da trama é dedicada ao impasse. Os problemas deste ponto de partida seriam numerosos demais para incluir num único texto: Emerson não precisaria do sequestrado para fazer o filme, já que possui equipamento e conhecimento suficientes; Henrique tem oportunidades de fugir, ou mesmo de ligar para alguém, mas permanece em cativeiro antes do início da amizade; o prestigioso diretor escuta orientações sobre linguagem cinematográfica (“Fecha mais o plano”, “Assim vai complicar a luz”), mas não compreende estar dentro de um filme; não existem outros profissionais nesta filmagem caseira; a contratação de atores secundários e figurantes parece extraída de uma esquete televisiva.

    Ilha exige considerável boa vontade do espectador para embarcar no quiproquó fabular e teatral. Os diálogos contribuem à impressão de que tudo não passa de uma brincadeira inconsequente, caso em que os personagens e as imagens se tornam acessórios ilustrativos. As interações entre Emerson e Henrique ostentam frases de efeito misturadas com o linguajar local, conversas de bar com discursos empolados. A confissão do diretor sobre um crime cometido no passado beira o humor voluntário, de tão mal escrita. Já o encontro de Emerson com os amigos num bar apresenta uma interação naturalista, verossímil. O discurso justapõe o pretensioso e o despretensioso, o artificial e o natural – tudo ao mesmo tempo agora.

    Se a primeira metade se arrasta, a segunda metade melhora consideravelmente, sobretudo quando abandona a desculpa do filme-dentro-do-filme a passa a investir na construção dramática de cada personagem, além da interação entre ambos. Os atores se saem bem na troca de afetos, na construção da sexualidade, ainda que abordada de modo meio jocoso – vide a cena de sexo filmada pelos pés. Neste segmento, eles deixam de ser marionetes de uma astúcia narrativa para se tornarem indivíduos com passados, vontades, desejos, contradições. O segmento final fornece belos instantes de relacionamento entre dois homens.

    Por fim, Ilha transborda carinho, cinefilia, vigor e muitas outras virtudes que lhe têm emprestado as reações enérgicas nos bastidores do Festival de Brasília. Além disso, é efetivamente criativo e memorável – valores importantes num projeto autoral. Dificilmente algum espectador sairá indiferente desta obra estranha, que interpela e não deve ser esquecida tão cedo. No entanto, não se pode ser condescendente a ponto de ignorar um sem-número de arestas e escolhas questionáveis de enquadramento, som, montagem.

    Sua metalinguagem soa fácil demais em alguns aspectos, e mesmo a emoção é calculada em excesso (vide a cena da canção, filmada num intenso close-up para destacar a lágrima suficientemente clara do ator). Nicácio e Rosa não fazem prova de sutileza, tampouco de coesão. Sua profunda originalidade se encontra na colagem de elementos díspares e conflitantes, ainda que sejam, individualmente, um tanto frágeis. Aí se encontram as belas falhas que encantam tantos espectadores, e incomodam tantos mais.

    Filme visto no 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em setembro de 2018.

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