Relatos selvagens do Velho Oeste
por Renato FurtadoEm mais uma empoeirada cidade do Velho Oeste, tudo o que o excessivamente simpático e cordial vaqueiro cantante Buster Scruggs (Tim Blake Nelson) deseja fazer é beber um pouco de uísque e jogar pôquer. Mas ao lado de seus colegas de copo do saloon e desarmado, ainda por cima, o Sabiá de San Saba — como prefere ser chamado, apesar de seus muitos outros apelidos menos lisonjeiros —, destoa terrivelmente da paisagem, com sua vestimenta branca e seus bons modos. Até o ponto, é claro, em que ele abre alguns buracos no rosto de um pistoleiro que o insultou.
Esta sequência musical/sobrenatural de 20 minutos — baseada em um perversamente divertido banho de sangue que deixa pelo menos 10 cadáveres pelo caminho — é apenas a primeira das muitas surpresas preparadas pelos irmãos Joel e Ethan Coen em sua nova obra, o antológico The Ballad of Buster Scruggs. Mas retomar este formato narrativo, que atraiu o interesse de cineastas de renome como Federico Fellini e Luchino Visconti nos anos 1960, não é tarefa fácil, como comprova a costura nem sempre regular dos seis contos curtos que compõem a totalidade deste original Netflix.
De uma forma ou de outra, no entanto, autêntico é um adjetivo que acompanha os sempre inventivos irmãos independentemente dos eventuais defeitos de seus projetos. A criatividade de The Ballad of Buster Scruggs, por exemplo, surge já no primeiro plano, um close que apresenta o longa como se ele tivesse sido baseado em narrativas reais do Velho Oeste, reunidas em um elegante livro: é esta brincadeira com histórias verdadeiras, uma tendência tão antiga para os Coen quanto Fargo, que estabelece um diálogo complexo entre duas “versões” da mesma obra.
Através dos contrastes entre os parágrafos do romanticamente ilustrado livro "The Ballad of Buster Scruggs" e das irônicas cenas de sua “adaptação”, os Coen não deixam pedra sobre pedra: nenhum clichê dos faroestes passa incólume pelo humor mordaz e afiado dos cineastas. Demonstrando amplo conhecimento do folclore americano e rindo abertamente de ataques de índios Comanche, jogos mortais de pôquer, assaltos a banco e homens condenados à forca, entre outros arquétipos narrativos, os realizadores jogam seu jogo favorito: a pulverização de mitos.
Não é por acaso que o personagem-titular deste longa não perca tempo em duelos: não há tempo para subir a música ou para criar lendas; só há tempo para a bala deixar o tambor e se alojar na cabeça do inimigo. E, sim, o ladrão de bancos interpretado por James Franco em “Perto de Algodones”, segunda parte da antologia, verá uma jovem angelical antes da escuridão tomar conta. Mas ela não está lá para salvá-lo: a beleza e o amor nunca passearam pelo Oeste americano em seus dias de glória e não é agora que começarão a fazer isso. Portanto, se não há salvação, vamos pelo menos rir (e muito) de nossa desgraça.
A paródia no cinema dos Coen não é, contudo, uma mera ferramenta de humor. Mestres em desconstruir ideias preconcebidas, os diretores deixam o melhor de The Ballad of Buster Scruggs para o final: “Restos Mortais”, um conto sobre dois caçadores de recompensas (Brendan Gleeson e Jonjo O'Neill, formidáveis) com um gosto pela filosofia e pela dramaticidade. Qual é o significado da existência humana? Bem, essa não é uma pergunta que você esperaria ouvir dentro de uma carruagem para uma espécie de cidade fantasma, mas é por detalhes como esses que os Coen são únicos.
O que o banqueiro das armaduras de panelas (um hilário Stephen Root), o cachorro nomeado após um presidente e o próprio Buster Scruggs têm em comum é verdade humana, mas quase sobrenatural, que povoa a filmografia destes diretores. Quando envereda pelo humor, portanto, mais especificamente nos episódios #1, #2 e #6, The Ballad of Buster Scruggs prova ser mais do que uma balada sobre um caubói assassino. É novamente com o apoio do riso nervoso ou da gargalhada histriônica provocados por um acaso absurdo que os Coen narram a balada da própria condição humana, pontuada por refrões desesperados e versos satíricos.
Mas nem tudo são flores. Em um projeto como este, construído por histórias escritas de maneira independente no decorrer de 25 anos, é quase natural que existam irregularidades, simbolizadas aqui pelos contos que compõem o miolo deste faroeste. A questão com “Vale Refeição” e “O Cânion de Ouro”, protagonizados por Liam Neeson e Tom Waits, respectivamente, não é a ausência da comédia, mas sim a falta de informações novas, de comentários pertinentes. Ambas narrativas dramáticas, as duas pecam ou pelo cinismo puro e simples, ou por um potencial vasto, porém pouco explorado.
Não basta, pelo menos não no caso de cineastas tão consagrados, oferecer respostas simples como a de que o dinheiro fala mais alto do que a humanidade (“Vale Refeição”) ou de que a natureza precisa se esconder do comportamento predatório do ser humano para sobreviver (“O Cânion de Ouro”). Quando funciona, de fato, sem nos fazer necessariamente rir de seus absurdos, The Ballad of Buster Scruggs é inteligente por nos fazer pensar, nos fazer questionar conceitos e a nós mesmos — como no divertido e insano embate filosófico de “Restos Mortais”, aparentemente direcionado aos espectadores.
O drama, por outro lado, tem seus momentos, caso de “A Garota que Ficou Nervosa”, estrelado por uma inspirada Zoe Kazan. Povoado tanto por personagens impossíveis, quanto por figuras mais naturalistas, este conto, o mais longo de todos, ecoa a melancolia de títulos como Bravura Indômita, O Homem que Não Estava Lá e Inside Llewyn Davis. Este quinto episódio, com seus tipos honrados e a vasta paisagem do Oeste — que, polêmicas à parte, realmente cabe melhor nas telonas do que nas telinhas da Netflix —, é o contraponto à desconstrução cômica, operando como um testemunho da verdade nua e crua dos faroestes.
Apesar de sua impressionante construção de mundo — impulsionada, aliás, pelas excelentes direções de fotografia e de arte —, The Ballad of Buster Scruggs certamente não é um clássico instantâneo; os irmãos, de fato, já criaram paródias e releituras de gêneros muito mais inspiradas, casos de Barton Fink ou mesmo de E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?. Entretanto, esta espécie de retorno às raízes dos diretores é uma obra de verdadeira continuidade, que demonstra que os Coen podem encontrar novos e empolgantes ângulos para velhos temas, motivos e narrativas da mitologia e do cinema estadunidenses. Sempre com um humor negro, diga-se de passagem.