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    M8 - Quando a Morte Socorre a Vida
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    M8 - Quando a Morte Socorre a Vida

    Lugar de fala

    por Laysa Zanetti

    A utilização da técnica de chiaroscuro na fotografia é apenas o primeiro indício da temática abordada por Jeferson De em M8 - Quando a Morte Socorre a Vida. O contraste é o mesmo sentido por Maurício (Juan Paiva) em seu primeiro dia de aula na faculdade de medicina, voando pelos corredores até encontrar a sala de anatomia e enfim chegando à sala, em que é o único negro além dos corpos que serão estudados durante o semestre, em que é confundido com um funcionário da universidade por um de seus colegas, aquele que inevitavelmente será o vilão que faz de tudo para prejudicar o companheiro de turma periférico, pobre, cotista.

    A realidade tão comum e tão presente de Maurício é a porta de entrada do filme para o seu objeto de estudo, o lugar ocupado pelo corpo negro dentro da sociedade, as formas como ele é imediatamente carregado de preconceitos e é sentido pelo outro. Caminhamos pela rotina de Maurício, do sincretismo religioso e do dia-a-dia rodeado de tanques do exército em um Rio de Janeiro de intervenção militar à convivência com o rico e poderoso Doutor Salomão, de quem sua mãe, Cida (Mariana Nunes em uma atuação poderosíssima), cuida na velhice. A talvez estranha fixação de Maurício com o corpo identificado como M8 logo se transforma no reflexo das políticas de estado excludentes e racistas, e ele faz de sua missão descobrir a origem e a identidade daquele corpo, saber sua história e dar a ele a paz tão almejada. 

    Neste sentido, M8 - Quando a Morte Socorre a Vida é um retrato poderoso de um estado falho e das políticas públicas que não escondem o preconceito. O grafite de Marielle Franco em um muro pelo qual Maurício passa todos os dias é algo que está ali para propositalmente incomodar, para não deixar o público se esquecer do seu lugar, de seu assassinato. Para deixar claro que o M8 são os milhares de jovens da favela que desaparecem e são mortos todos os dias sem que ninguém jamais saiba de seus destinos.

    Por isso, M8 é um filme essencialmente carioca, com o Rio de Janeiro impresso em todos os cantos. Nas cenas em que Maurício, convidado para a festa de aniversário de um dos colegas de turma, frequenta a Zona Sul e observa a orla de Botafogo, é gritante a diferença estética e visual em todos os sentidos. Nestes momentos, quando a direção e a fotografia optam por destacar o vazio, estão dizendo ao mesmo tempo sobre a solidão de Maurício neste lugar do qual não se sente parte e sobre a gentrificação do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo em que é um longa que tem o Rio como um personagem essencial, também se aplica às realidades de todo um Brasil que se contenta com o apagamento da religiosidade afro-brasileira e em que quase não se questiona por que o país segue com uma estrutura social segregacionista, excludente e escravocrata.

    Algumas cenas são mais didáticas que outras, algumas trocas são propositalmente constrangedoras — como o diálogo entre Maurício e Carlota (Malu Valle) —, outras são necessárias catarses — vide a briga de Maurício com a mãe na cozinha apertada do apartamento. O resultado é um belíssimo filme que reforça a necessária efervescência política que retoma o seu espaço no cinema, com Jeferson De orgulhoso ao mostrar de onde veio e a que veio e, acima de tudo, que se permite pensar no momento em que vivemos com esperança e fé. Esperança na capacidade de mudar, fé na certeza de que o jovem negro não deve continuar sendo questionado simplesmente por existir e ocupar. Em meio a tantos retratos estrangeiros da favela, M8 é um filme apoteótico de paixão, verdades e a busca pela paz. Resta alcançar.

    Filme visto no 21º Festival do Rio, em dezembro de 2019.

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