Genealogia do monstruoso
por Renato FurtadoCaveiras somam-se aos ruídos, corpos nus em posições quase impossíveis e sexuais acumulam-se conforme os cortes aceleram o ritmo das imagens e esculturas peculiares e monstruosas, complexas e impactantes, conferem outras camadas à narração dissonante, cortesia da voz potente e performática da cantora Marina Lima. Conjugados, os elementos vão aos poucos postando perguntas: o que é o belo? A beleza é possível? Para que serve a arte? Quem se afeta pelo horror? As respostas podem existir, mas como coloca em debate o documentário Tunga, o Esquecimento das Paixões, o importante, acima de tudo, é questionar.
Ao menos era isto que pretendia, de acordo com a não-ficção dirigida por Miguel de Almeida, Tunga, pseudônimo de Antônio José de Barros Carvalho e Mello Mourão, artista plástico brasileiro que rompeu as fronteiras da arte contemporânea e fez sua obra — composta por esculturas, performances, vídeos, experimentações e ilustrações espectrais e fantasmagóricos, que faziam chocar o belo ao horrível e monstruoso, como no Inferno de Dante — rodar o mundo inteiro. Pioneiro e artista multimídia, interessado em âmbitos tão diversos entre si quanto a literatura, a psicanálise, o teatro e as ciências exatas e biológicas, Tunga foi o primeiro artista contemporâneo a expor sua arte no Museu do Louvre.
Contudo, estes são apontamentos meramente históricos, tratados como citações casuais e/ou apêndices por um documentário que, apesar do aspecto biográfico e de apoiar-se em inúmeros registros de arquivos da preparação das obras do artista-sujeito, ou mesmo de textos dedicados aos seus trabalhos, prefere a via do ensaio visual, o caminho do filme de montagem. Assim, O Esquecimento das Paixões contrapõe imagens a depoimentos em aceleração constante, embalado pelo rock and roll psicodélico e tropicalista dos anos 1960 e 1970, buscando significados mais por intermédio do choque entre o visual e o sonoro do que pelo discurso, da expressão vocal, da “facilidade” da palavra, tão característica dos talking heads.
Esta não-ficção é, portanto e de certo modo, uma tentativa de transpor audiovisualmente as inquietações do próprio Tunga — daí a inquietação pulsante do próprio filme, é claro — enquanto artista. Em outras palavras, o documentário não pretende comunicar nada das diversas camadas e fragmentação das obras de seu protagonista, tão caleidoscópicas quanto a edição do longa-metragem, mas sim tornar signos e afetos presentes. De Almeida aborda, assim, a cinebiografia de maneira desafiadora e livre, o que certamente o ajuda a transmitir a essência misteriosa do personagem principal, um artista que viveu sua obra, e que viveu, transtornado e rebelde, tudo intensamente.
Aproximando-se mais da videoarte do que qualquer outra coisa, O Esquecimento das Paixões se esforça para examinar seu biografado com a maior amplitude estética possível, com fidelidade às características intrínsecas de Tunga, e também ao mito erguido ao redor do artista, em uma verdadeira genealogia do aspecto monstruoso da arte do escultor, pintor e irrequieto criador. Por sua vez, para além da montagem, a variada textura das imagens reside no campo do possível — do que foi possível coletar em si, e não necessariamente do belo ou do esteticamente bem constituído —, o que só adiciona mais uma camada à exploração do cineasta em relação à obra de Tunga.
No entanto, o prisma oblíquo pelo qual a estrutura da cinebiografia é filtrado é uma faca de dois gumes. Se, por um lado, de Almeida ganha em proximidade, ele perde em clareza. Se espelhar o hermetismo das obras de Tunga é mesmo o intuito primordial deste O Esquecimento das Paixões — ou seja, se o intuito primordial é captar e traduzir o espírito agitado e subversivo de um artista rockstar em forma de documento, mas não de documento frio —, este objetivo também afasta o espectador. Não fornecer fatos, mas peças de um quebra-cabeça não é um problema; é um problema, no entanto, faltar conexão e empatia a um documentário que pretende tecer uma furiosa e vivaz elegia.
São pouquíssimos os momentos em que o espectador tem o tempo, de fato, para apreciar ou se deixar ser afetado pelas criações inexplicáveis de Tunga — labirínticas, grandiosas e infernais — sem a influência ou interferência constante da montagem. Os depoimentos de artistas renomados como Miguel Rio Branco e Arthur Omar também poderiam enriquecer O Esquecimento das Paixões, mas a palavra não tem destaque neste documentário — um depoimento, no entanto, quando bem posicionado e colhido, tem valor ímpar; às vezes, a palavra diz mais mais do que mil imagens, como os relatos cortados e sempre precocemente interrompidos dos entrevistados comprovam.
Preso entre lá e cá, entre imagem e discurso, mas com uma evidente tendência ao academicismo e à teorização, O Esquecimento das Paixões não diz ao que vem. Demandando um esforço constante de seu público, o documentário parece sofrer mesmo de uma falta de afeto por seu biografado. O filme parte de Tunga e de seus princípios, especialmente da noção de que a arte não tem bula e nem manual de instrução; mas também por isso, no entanto, resulta distanciado e tangencial ao seu objeto de observação. O documentário não mergulha no seu protagonista, apenas gravita ao seu redor: com o perdão do trocadilho, O Esquecimento das Paixões esquece, por vezes, a paixão em si.
E como é importante a paixão para Tunga, artista intenso que, segundo o próprio documentário, considerava a si mesmo como próprio público, por ser vários dentro de um só. A despeito da beleza e da poesia do pensamento que reconhece a multiplicidade humana, no entanto, a não-ficção adiciona mais e mais estranhamento, um incômodo que não se coaduna à comunicação, mesmo que bizarra, estabelecida pela obra de Tunga com o Outro. Obcecado pela luz e pelas suas reflexões, o artista é aqui eclipsado: sempre presente, porém sempre distante e ausente, em um todo narrativo que resulta mais confuso do que elucidativo.
Para Tunga, a arte faz mover nossos corpos inteiros, torna a vida mais cheia de sentido, mais intensa e mais divertida. A arte, segundo Tunga, fala para todos, mas também para os indivíduos. O artista não tem poder, mas a obra fica, permanece, gera sentido, mesmo após a morte do artista. Estes são apenas alguns dos interessantes conceitos que o filme tenta fazer caber no espaço de poucos minutos, já no fim da projeção, sentenças e filosofias basilares e cruciais que poderiam ter informado o desenvolvimento da narrativa, mas que infelizmente são relegadas a cumprir um papel de meros comentários, meras notas de rodapé.