Minha conta
    Astracã
    Críticas AdoroCinema
    1,0
    Muito ruim
    Astracã

    Cinema em jam session

    por Bruno Carmelo

    Astracã constitui um OVNI dentro do cinema brasileiro, e dentro dos festivais audiovisuais de modo geral. Realizado com baixíssimo orçamento, captação digital caseira, com os atores dublando suas vozes ou trazendo comentários deslocados da imagem, ele certamente não representa uma experiência fácil. Ele tampouco pretende ser acessível, ostentando uma construção hermética, desconexa. O filme dirigido por Victoria Vic recusa a narrativa linear, a noção de cronologia ou desenvolvimento dos personagens; recusa tanto o realismo quanto a fábula; recusa a produção de significados fáceis, mas também a ausência de significados ao embutir pensamentos teóricos em off.

    Construindo-se como recusa, o resultado seria descrito com mais facilidade pelo que ele não é. O que fornece ao público – um imbróglio em torno de pérolas preciosas – funciona como falso motor narrativo, núcleo fictício em torno do qual orbitam as imagens. O motivo do encontro e venda das pérolas é construído essencialmente pelo som, sem encontrar equivalência nas imagens. Ele deixa a curiosa impressão de ser construído na pós-produção, talvez quando as cenas já tivessem sido captadas, para revesti-las de sentido e uni-las de algum modo. De resto, presenciamos um grupo de jovens tocando música, andando pelas areias da praia, cozinhando, conversando.

    O encadeamento das cenas incomoda pela impressão de aleatoriedade: quaisquer interações entre os personagens poderiam acontecer, pois elas não modificam os rumos da trama, nem afetam uns aos outros. Astracã poderia ter cinquenta minutos a menos ou cinquenta minutos a mais, sem grandes danos ao conceito estético. A dublagem das vozes pode ser usada como dissonância voluntária, ou talvez como maneira de driblar dificuldades de produção. O mesmo vale para o teor caseiro da captação, entre a louvável vontade de afirmação de um cinema a qualquer preço e a dificuldade de elaborar algo mais refletido em termos de luz e som. O amadorismo encontra seu duplo sentido: este é um cinema de amores metalinguísticos, e também um cinema de precariedade estrutural.

    Seria fácil encaixá-lo no rótulo “experimental”, onde costumamos jogar todos os filmes de difícil classificação. Mas o que, de fato, se experimenta neste caso? Nem a dissociação entre som e imagem, nem a sobreposição de camadas, tampouco os ruídos sujando o som direto constituem propriamente uma experimentação ou novidade – não são aplicadas em contextos novos, particulares, nem produzem efeitos singulares, dignos de nota. A interação com frases teóricas como “fazer do canto um movimento em direção ao canto” ou “como se a região-mãe da música fosse um lugar desprovido de música” seria capaz de provocar reflexões pertinentes caso se desenvolvesse, caso o hermetismo fornecesse, ao mínimo, algumas chaves de leitura.

    “Na verdade, este projeto brinca com dezenas de teorias do cinema”, um espectador explicou ao colega no final da sessão. “A montagem não existe apenas no cinema, mas também na vida: quando a gente seleciona o que faz e o que não faz, isso também constitui uma forma de montagem”, completou. Estas interpretações são intrigantes e dignas de desenvolvimento, embora seja difícil defender a presença das mesmas dentro do filme. Astracã se assemelha a uma pintura abstrata, diante da qual cada espectador é convidado a projetar, seus desejos, seus prazeres, sua bagagem intelectual específica. Ele pode ser defendido como provocação conceitual, embora falhe na tentativa de representar algo mais que uma rebeldia cinéfila.

    Filme visto no 13º Festival Latino-Americano de Cinema de São Paulo, em julho de 2018.

    Quer ver mais críticas?
    Back to Top