Quando Chucky e Black Mirror se encontram
por Aline PereiraChucky e Annabelle não terão escolha a não ser abrir espaço em suas prateleiras para uma nova representante forte do gênero “bonecos assassinos”. Mortal e carismática (afinal, a viralização dos vídeos de danças antes mesmo da estreia não nos deixa mentir), M3GAN traz elementos de terror cômico para uma história que tem, sim, recados relevantes para passar. Temos uma fábula atual sobre a relação de dependência e sobre o impacto da tecnologia, em especial, nas relações humanas – a boneca, no fim das contas, nos dá uma visão extrapolada e assustadora do que acontece quando confiamos demais em assistentes virtuais.
Com roteiro assinado por James Wan (Invocação do Mal) e Akela Cooper (American Horror Story), a história de M3GAN começa quando a pequena Cady (Violet McGraw) sofre um acidente de carro que mata seus pais e fazem com que ela seja enviada para custódia da tia, Gemma (Allison Williams). Roboticista e designer em uma grande empresa de brinquedos, Gemma aceita receber a criança, embora não tenha o menor desejo de ser mãe, o que torna a relação entre elas atribulada.
Enquanto isso, no trabalho, ela está empenhada na criação de uma boneca equipada com um sistema de inteligência artificial ultra-avançada. O objeto é desenvolver o “brinquedo definitivo”, que sirva como a melhor companhia para qualquer criança, além de uma aliada para os pais. Batizada de M3GAN (“Model 3 Generative Android”), a boneca se conecta profundamente a seu dono, aprendendo rapidamente com as interações, identificando emoções e, mais importante, com a missão implacável de proteger o bem-estar da criança. Custe o que custar.
A ideia da inteligência artificial saindo do controle não é, nem de longe, uma novidade na ficção científica e, das leis da robótica de Isaac Asimov aos episódios apocalípticos de Black Mirror, quase sempre encontram um novo viés para explorar a tragédia. Não é diferente com M3GAN, que se volta para as consequências do uso da tecnologia não só como substituta de relações reais, mas como solução prática de entretenimento – quem tem crianças por perto, em especial, provavelmente já se habituou ao termo “tempo de tela”, que é usado também nesta história.
Sem saber exatamente como conversar com Cady e lidar com o comportamento de uma criança, Gemma terceiriza esse cuidado e não demora a perceber que talvez não tenha sido uma boa ideia. Por mais avançada que seja a inteligência artificial que criou para o brinquedo, falta, é claro, o elemento humano na hora de tomar decisões – pragmática em tudo, M3GAN até consegue descobrir o que as pessoas à sua volta estão sentindo, mas a frieza do algoritmo não entende que não vale tudo para resolver problemas.
Não é que o longa seja muito filosófico ou muito profundo para discutir esse tema: há pouquíssimos momentos ou reviravoltas que surpreendem e provavelmente o espectador vai saber exatamente o que acontecerá logo nos primeiros minutos de filme. Ainda assim, é difícil não ficar envolvido com as personagens e com a proximidade do tema pelas “cutucadas” em nossa hipocrisia enquanto sociedade que usa a tecnologia como ferramenta para evitar ou postergar o que, de fato, é importante.
Pouco antes do lançamento nos cinemas, o diretor Gerard Johnstone disse que o estúdio resolveu fazer algumas modificações para que o filme tivesse uma classificação indicativa mais baixa, com o objetivo de ampliar seu público. Assim, o que antes seria uma produção para adultos, ganhou classificação indicativa de 13 anos (nos Estados Unidos) - uma decisão que veio da popularidade do trailer de M3GAN e de sua dança nas redes sociais.
A “suavizada” é nítida: embora continue se caracterizando como um filme de terror, temos uma produção bem branda no que diz respeito à quantidade de sangue e das mortes, por exemplo. Pode ser um ponto negativo para quem espera ver atrocidades mais explícitas: embora, é claro, coisas horríveis aconteçam, é difícil se convencer de que a boneca é realmente tão letal assim no sentido físico da coisa. A escolha do estúdio pela diminuição da violência física cria a sensação de que não estamos vendo tudo o que a boneca assassina é capaz de fazer e limita a criatividade no que diz respeito à forma como ela age - enquanto em histórias como a de Chucky e Annabelle, os requintes de crueldade fazem parte do show.
Por outro lado, o pavor que M3GAN causa em nós vem muito mais do discurso terrorista que ela faz e das “opiniões” que desenvolve. A forma como a inteligência artificial da boneca se expande também assusta porque suas ações são, afinal de contas, um resultado do que aprendeu com pessoas de verdade. Não vamos dar spoilers, é claro, mas a ideia do que é o correto ou de qual é o melhor jeito de lidar com alguém que está causando problemas agrega o que há de pior no comportamento humano, sem filtro, sem equilíbrio e sem empatia – no fim das contas, talvez esta última seja a característica fundamental que a máquina ainda não, que é a de se colocar no lugar do outro.
Tendo em vista a diminuição da violência e o foco na mensagem que quer passar, M3GAN atinge seu objetivo de ampliar o público: nos primeiros dias de lançamento no cinema norte-americano, o longa foi o que mais conseguiu se destacar mesmo com o gigante Avatar: O Caminho da Água disponível nas salas de cinema no mesmo período. A trama se apoia muito mais na tensão e no suspense para entender como Gemma e Cady conseguirão se virar, do que na ação propriamente dita.
Embora lide com questões dramáticas, como luto e solidão, M3GAN mantém um clima muito bem-humorado em praticamente todos os momentos. O filme conta com diversos momentos genuinamente engraçados, que pegam o público desprevenido e que brincam com o absurdo das situações de forma original, no ponto certo entre nos manter conectados ao lado mais reflexivo da história e deixar claro que é uma produção feita para ser acompanhada de um balde enorme de pipoca.