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    Tigre
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Tigre

    A burguesia selvagem

    por Bruno Carmelo

    A casa em torno da qual gira este drama poderia constituir o lar de uma família qualquer – particularmente rica, é certo, mas ainda assim um grupo tradicional composto pela avó abastada, as filhas, as netas. Logo, descobrimos um contexto diferente: a casa não é habitada regularmente, e para evitar problemas de posse, a matriarca Rina (Marilu Marini) decide ocupar o imóvel com pessoas próximas, apenas para sugerir às autoridades que o local é habitado. Entram em cena amigos, namorados, pessoas que se conhecem, mas não costumam passar muito tempo juntas.

    Para os jovens, esta é uma rara oportunidade de férias no Delta do rio Tigre, mas o roteiro não demora a sugerir um lado pouco elogioso destes indivíduos mesquinhos, individualistas, perversos. Para as crianças, os rituais de iniciação passam por maltratar animais. Para os jovens, o princípio de diversão diz respeito ao sexo, e para os mais velhos, as trocas giram em torno do dinheiro. Cada um exerce poder como pode, manipulando os demais num ambiente destituído de afeto. Os diretores Ulises PorraSilvina Schnicer calibram os atores numa espécie de hipocrisia constante, com eventuais momentos de diversão genuína permeados pelo desprezo mútuo. Eles se toleram para desfrutarem daquela casa, a natureza ao redor, os riachos.

    Tigre impressiona pela beleza de suas imagens. Ao invés de buscar um estetismo externo às cenas – com filtros, luzes artificiais ou elementos rebuscados de cenografia e figurino, por exemplo – os cineastas resgatam a atmosfera pantanosa e úmida, dos braços transpirando dentro de casa, da luz fraca na cozinha quando alguém entra para preparar um sanduíche. A letargia é muitíssimo bem captada com uma atenção especial aos corpos não idealizados dos homens e mulheres. Neste drama, as pessoas se desejam ou se odeiam por inércia, sem real força. Quando ouvem falar de uma adolescente desaparecida na região, não se desesperam. Uma hora ela deve voltar, certo? “Aqui é a lei da selva. Cada um faz o que tem vontade”, explica a matriarca que, afinal, não é mãe da quase nenhuma dessas pessoas para dar ordens ou se importar de fato.

    Enquanto isso, a progressão narrativa adota um caminho singular: ao invés de lançar reviravoltas rumo a um desenlace preciso, a estrutura permite que as cenas se alterem sem afetar umas às outras, impedindo um desenvolvimento linear, inevitável. As trocas sexuais, amigáveis e raivosas na floresta ou ao redor da mesa de jantar poderiam continuar indefinidamente. O roteiro dedica tempo considerável a construir a personalidade de uma dezena de personagens, de modo a tornar palpáveis os seus encontros. Para o público médio, talvez o andamento seja arrastado demais, porém os espectadores interessados em embates psicológicos encontrarão material farto. A selvageria simbólica da conclusão representa uma excelente maneira de catalisar os conflitos.

    Se existe um porém neste projeto – e trata-se de uma ressalva importante – ele se encontra na semelhança extrema com O Pântano, de Lucrecia Martel. Em comparação com o marcante filme de 2001, encontramos a maneira de filmar os corpos, o tédio dos ricos dentro de uma casa, a figura da matriarca controladora, o perigo da morte assombrando as crianças, a morte de animais, além da própria paisagem do pântano. Poderíamos falar em obras irmãs, obras gêmeas, em uma homenagem... Ou talvez em plágio, como apontaram alguns espectadores mais incomodados ao final da sessão. Se viesse antes de O Pântano, Tigre provocaria um impacto maior. De qualquer modo, possui méritos cinematográficos e discursivos de sobra para se sustentar como obra autônoma.

    Filme visto no 13º Festival Latino-Americano de Cinema de São Paulo, em julho de 2018.

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