Em meio à Segunda Guerra Mundial, drama traz perspectiva diferente e perturbadora sobre os horrores do Holocausto
por Bruno Botelho dos SantosNão é de hoje que o nazismo e os horrores do Holocausto são retratados no cinema, uma temática sensível e complexa que foi abordada (muitas vezes de maneira problemática) em inúmeros filmes, incluindo clássicos como A Lista de Schindler (1993) e A Vida é Bela (1997). É pensando nisso que Jonathan Glazer apresenta uma perspectiva um tanto diferente, e não menos perturbadora, com Zona de Interesse, vencedor do Grand Prix no Festival de Cannes de 2023 e com cinco indicações ao Oscar 2024, incluindo Melhor Filme e Melhor Filme Internacional.
Zona de Interesse se passa durante a Segunda Guerra Mundial, quando Rudolf Höss (Christian Friedel), o comandante de Auschwitz, e sua esposa Hedwig (Sandra Hüller), desfrutam de uma vida aparentemente comum e bucólica, em uma casa com jardim. Mas, por trás da fachada de tranquilidade, a família feliz vive, na verdade, ao lado do campo de concentração de Auschwitz. O dia a dia destes personagens se desenrola entre os gritos abafados de desespero, de um genocídio em curso, do qual, eles também são diretamente responsáveis.
Um dos problemas mais recorrentes envolvendo produções sobre o Holocausto é o da espetacularização quando as histórias são apresentadas nas telonas, perdendo completamente a sensibilidade sobre um genocídio que tirou a vida de milhões de pessoas. Zona de Interesse vai na contramão disso. Adaptando o romance homônimo de Martin Amis, Jonathan Glazer parte de uma perspectiva diferente pelo seu distanciamento, onde ele evidencia os horrores não a partir daquilo que é mostrado, mas daquilo que ouvimos e é ignorado pelos personagens.
Desta forma, o filme foca na rotina de Rudolf Höss e sua família, que não teria nada de anormal se não fosse o fato da propriedade estar localizada exatamente ao lado de Auschwitz, complexo dos campos de concentração que foi o maior criado pelo regime nazista durante a Segunda Guerra Mundial e comandado pelo protagonista. É neste contraste perturbador que impacta o público durante suas 1 hora e 45 minutos de duração.
Zona de Interesse não precisa entrar no campo de concentração para que as atrocidades cometidas pelos nazistas sejam sentidas. O roteiro de Jonathan Glazer está interessado em mostrar como o Holocausto foi normalizado por essas pessoas, mantendo suas vidas confortavelmente e se preocupando com seus problemas banais, enquanto do outro lado do muro um genocídio está sendo praticado – sem que elas se sintam abaladas ou afetadas. Na verdade, é um drama familiar onde a vida perfeita deles naquele lugar (com um belíssimo jardim) só pode ser afetada quando o comandante Rudolf Höss precisa voltar para Berlim.
O filme examina justamente o mal presente na humanidade e a banalização do mal, onde nós como sociedade também podemos ser cúmplices de ideologias como essa em nosso dia a dia.
Jonathan Glazer não é muito chegado em narrativas tradicionais. Em sua elogiada parceria com Scarlett Johansson em Sob a Pele (2013), o diretor deixou isso claro com uma ficção científica existencialista pouco convencional. Zona de Interesse é experimental em muitos sentidos, com Glazer filmando a casa e o jardim de Rudolf Höss como se fosse o Big Brother, como o próprio revelou, onde o público assiste ao dia a dia da família em seu “paraíso” – enquanto ao lado pessoas vivem o "inferno".
A direção de Jonathan Glazer com auxílio da cinematografia de Lukasz Zal faz um bom trabalho na construção de planos que mostram a beleza do local e uma rotina tranquila, mas que, ao fundo, sempre vemos os muros de Auschwitz ou suas fumaças tomando conta da paisagem. É como um lembrete para o público sobre as atrocidades que essas pessoas normalizaram – o que acaba sendo mais assustador e revoltante no filme – e também sobre a importância de manter sempre viva a memória sobre o Holocausto para que isso nunca se repita.
Tanto Christian Friedel, que interpreta o comandante Rudolf Höss, quanto Sandra Hüller, indicada ao Oscar por Anatomia de uma Queda, que interpreta sua esposa Hedwig, passam perfeitamente essa desumanização e total apatia de seus personagens, só preocupados com seus interesses. Isso é bem construído pela narrativa, que foca um drama familiar quando o bem-estar dos Höss entra em conflito com a vida profissional de Rudolf.
O destaque de Zona de Interesse fica inegavelmente para o trabalho poderoso e assustador de design de som realizado por Johnnie Burn. É daqui que parte o contato com os horrores do Holocausto, com todos sons perturbadores que temos de Auschwitz, de onde pode se escutar sirenes, tiros de soldados e gritos de prisioneiros no campo de concentração, por exemplo. No cinema, muitas vezes o que não é mostrado tem mais força do que aquilo que vemos, como é o caso dessa experiência sonora realmente perturbadora e desconfortável. Por isso, o som impacta quem está assistindo contrastando com a normalidade na vida dos Höss.
Como todos filmes sobre nazismo, Zona de Interesse é uma experiência desconfortável. Mas seu diferencial é que Jonathan Glazer não comete o mesmo erro de muitas produções que espetacularizaram os horrores do Holocausto.
O diretor foca em uma experiência sonora perturbadora vinda dos campos de concentração, sem precisar mostrar nada do que acontece, mas acompanhando a rotina de uma família que normalizou isso e vive tranquilamente do lado de Auschwitz enquanto vidas estão sendo tiradas do outro lado do muro.
Zona de Interesse é um estudo sobre o lado mais sombrio da humanidade e de nossa cumplicidade quando ignoramos ou naturalizamos certas ideologias. É também sobre a importância de manter vivo na memória os horrores do Holocausto.
*O AdoroCinema assistiu ao filme durante a 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.