Quando a memória se converte em um campo de confronto, a dor transcende o mero sentir, tornando-se um fardo que se perpetua indefinidamente. É sob a direção intensa de Walter Salles e a interpretação arrebatadora de Fernanda Torres que essa dor se metamorfoseia em uma vivência visceral, onde cada movimento e cada silêncio desvelam a profundidade de uma batalha pela verdade que jamais se dissipará. Um marco indiscutível na história do cinema nacional.
Ainda Estou Aqui, a mais recente obra do cineasta Walter Salles, é um filme que se erige como uma meditação intrínseca sobre o peso da história e a resiliência humana, adentrando um território profundo e doloroso da memória nacional. Lançado em novembro de 2024, essa produção cinematográfica se apresenta não apenas como um retrato histórico, mas como um ato de resistência emocional que, por meio de uma poética imersiva e silenciosa, nos conduz a um Brasil dilacerado pela dor de um passado que, de certa forma, nunca se dissipou. É uma história de luto e saudade, mas também de um amor e uma luta que transcendem o tempo e a repressão. Em sua exploração da ditadura militar brasileira, Ainda Estou Aqui não apenas resgata a memória de um país, mas escava nas profundezas do ser humano, trazendo à tona as forças que nos sustentam, mesmo quando tudo parece ruir.
A grandeza dessa obra reside em sua capacidade de mesclar o impacto histórico com a íntima e pungente dor de Eunice Paiva, cujo marido, Rubens Paiva, desapareceu sob os horrores do regime militar. Ao centrar a trama na busca incansável de Eunice por justiça e pela verdade sobre o paradeiro de seu companheiro, Walter Salles nos apresenta um filme que é, por sua essência, um testemunho de resiliência. Ainda Estou Aqui não se limita a retratar os eventos de forma objetiva ou documental; ele vai além, penetrando na alma da personagem e, por extensão, de toda uma nação. A dor e a resistência de Eunice são emblemáticas de uma luta coletiva que ecoa na memória de milhares de famílias brasileiras ainda à espera da justiça que lhes foi negada.
A direção de Salles, com sua sensibilidade única, cria uma atmosfera densa, onde a narrativa se desenrola lentamente, entrecortada por silêncios carregados de significados. O filme não se apressa; ele exige paciência e reflexão do espectador, permitindo que a tensão emocional se construa sem pressa, de forma gradual. Cada pausa, cada olhar furtivo, cada gesto contido, não é apenas uma escolha estética, mas uma declaração de respeito à memória das vítimas, que muitas vezes foram silenciadas de forma brutal. Nesse sentido, a obra escapa da armadilha do melodrama, preferindo uma introspecção quase dolorosa que nos obriga a confrontar as feridas abertas pela ditadura.
O Brasil, em sua dualidade, se torna um personagem à parte. A ironia cruel do filme reside na coexistência entre momentos de celebração e de dor. Aniversários, jantares em família, passeios de sorvete: gestos simples e cheios de uma humanidade imensa, que se mesclam com a violência que pairava no ar, tornando-se ao mesmo tempo um reflexo da fragilidade da vida e da força do espírito humano. São essas imagens que fazem de Ainda Estou Aqui uma obra de contrastes, onde a beleza e o horror coexistem de maneira quase simbiótica, refletindo a realidade paradoxal do Brasil naquele período: um país dividido entre o amor à vida e o medo constante da morte, entre a resistência e o sofrimento.
A direção de arte se torna outro pilar fundamental para que essa atmosfera seja criada de forma tão eficaz. A recriação do Rio de Janeiro de 1971, com sua fidelidade meticulosa, não se limita a um exercício de nostalgia, mas é um convite imersivo para a vivência daquele tempo. Os figurinos e as maquiagens não são meros detalhes estéticos, mas uma extensão da própria dor dos personagens. Cada elemento visual carrega um peso emocional, amplificando a intensidade do sofrimento e da nostalgia que permeiam a narrativa.
No centro dessa experiência está a atuação de Fernanda Torres, que dá vida a Eunice Paiva de maneira arrebatadora. Sua interpretação é, sem dúvida, o coração pulsante do filme. Torres não apenas encarna a dor de uma mulher que busca respostas para um desaparecimento, mas também a força indomável de uma mãe e esposa que, mesmo diante da devastação, encontra uma razão para continuar a luta. Ela transmite uma complexidade emocional imensa, com gestos sutis e olhares que falam mais do que mil palavras. Sem ela, a história perderia não apenas a dimensão emocional, mas a própria essência de sua dor. Ao lado de Selton Mello, Fernanda Montenegro e do restante do elenco, o filme adquire uma força rara e impressionante, com interpretações que são, em sua maioria, contidas, mas de uma profundidade que chega a ser esmagadora.
A construção de Ainda Estou Aqui vai além da técnica cinematográfica. O silêncio se torna uma linguagem, um recurso que Salles utiliza para escavar o fundo do abismo emocional dos personagens. Ele compreende que, para contar uma história de dor tão íntima e imensa, é necessário respeitar a pausa, o vazio, o espaço onde a palavra não pode alcançar. É nesse silêncio carregado que a emoção se revela em sua forma mais crua, tornando-se impossível não sentir o peso de cada momento, de cada cena.
Por fim, Ainda Estou Aqui não é apenas um filme sobre o passado; é um grito silencioso que reverbera no presente. O filme questiona nossa capacidade de encarar as sombras da nossa história e nos desafia a olhar para as feridas que, mesmo abertas, continuam a sangrar. A obra de Walter Salles é, ao mesmo tempo, uma reflexão dolorosa sobre a memória e um lembrete de que o Brasil nunca se desligou de seu passado – um passado que, por mais que tentem esconder, jamais se apagará, pois ele ainda vive nas cicatrizes de uma nação.
A mensagem final resume-se ao simples ato de sorrir: um gesto que persiste além da vida e da memória, ou então se perde, deixando apenas o que restou. Fernanda Torres revelou sua bravura em cena, enquanto Fernanda Montenegro, em sua quietude eloquente, sequer precisou pronunciar uma palavra. E, como Eunice Paiva, continuaremos a lutar, por mais que a dor insista em permanecer, porque, em última instância, ainda estamos aqui, e não importa o quanto tentem apagar nossa história, ela sempre encontrará um jeito de sobreviver.