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    Ainda Estou Aqui
    Críticas AdoroCinema
    5,0
    Obra-prima
    Ainda Estou Aqui

    Família, ditadura e o dilema da dúvida: Walter Salles e Fernanda Torres formam parceria brilhante

    por Aline Pereira

    “Quando você o enterrou?”. Eu estava certa de que Ainda Estou Aqui já tinha encontrado e percorrido todos os caminhos para me marcar – no estômago, na cabeça, no coração – no momento em que essa pergunta, feita pela filha caçula de Rubens Paiva, coroou a grande questão do filme de Walter Salles. Adaptado da obra de Marcelo Rubens Paiva e estrelado por Fernanda Torres, o longa traz a história íntima de uma família que é também a de dezenas de outras milhares de pessoas. E é sempre bom lembrar.

    Escolhido pela Academia Brasileira de Cinema para representar o Brasil na disputa por uma vaga na categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar 2025, Ainda Estou Aqui começa no Rio de Janeiro do início de 1970, na casa da família de Rubens (Selton Mello), Eunice Paiva (Fernanda Torres) e os cinco filhos do casal. Engenheiro e ex-deputado, Rubens Paiva foi sequestrado por militares, acusado de conspiração contra o governo e desapareceu. Sem vestígios e provas de seu paradeiro, Eunice passou a cuidar da família sozinha.

    A trama, então, nos leva pelo período após o desaparecimento de Rubens, retratando a perseguição enfrentada pela família e a luta – interna, em especial – de Eunice, determinada a manter o bem-estar de seus filhos e a buscar respostas para o sumiço do marido. Esta angústia, mesclada à perspectiva branda que a mãe tentava oferecer às crianças, puxa quem está assistindo para perto de dor muito incômoda. Sem artifícios, a sensação de perda que a narrativa provoca é profunda, de aperto e de reflexão. Difícil passar ileso. Impossível passar sem pensar.

    Sony Pictures

    Vida interrompida: A dor de Ainda Estou Aqui começa na imagem

    O início de Ainda Estou Aqui é doce e parece nostálgico (e não há conforto em usar esta palavra neste contexto): a paisagem carioca é ensolarada, de praia, calor, refrigerante, flertes adolescentes, brincadeiras infantis e a primeira entrada na vida da família Paiva é extremamente amorosa. Pela escolha técnica da captura da ambientação, é como se a direção nos abrigasse em um porto seguro e não tivesse pressa de nos apresentar a casa.

    A história leva seu tempo para nos deixar à vontade com o casal e os filhos, o que só torna a tensão pelo que vai vir e o desenrolar dos acontecimentos ainda mais comoventes. A partir da obra original de Marcelo Rubens Paiva, caçula de Rubens e Eunice, e que era criança na época, a representação da memória em imagem é fantástica. Aqui, a dinâmica entre Fernanda Torres e Selton Mello e especialmente dele com o elenco jovem que dá vida aos filhos (selecionados a dedo, incrível!), já me dava a certeza do coração partido logo à frente.

    Quando Rubens sair de cena, o tempo fecha de forma literal: não há mais resquícios de dias ensolarados, não se vê a praia como antes e a casa passa a parecer intimidadora. O pouco que sobra da vida como ela era – se é que dá para colocar assim – vem do esforço hercúleo de Eunice para manter os filhos de pé. É no testemunho dessa força, particularmente, que Ainda Estou Aqui mais me emocionou. Assistindo ao filme em 2024, mais de 50 anos depois dos acontecimentos retratados, imaginar uma perda repentina e sem respostas é terrível. Como é que se segue em frente com isso? Como é que Eunice encontrou um caminho?

    Vivo ou morto?: A crueldade de não saber o que aconteceu

    Sony Pictures

    A violência da ditadura militar tem uma abordagem mais “indireta” na obra de Walter Salles: tão terrível quanto a violência física é a consequência para as famílias e a obra se aprofunda na crueldade de precisar continuar vivendo sem saber o que aconteceu. Sem direito à certeza alguma, Eunice e os filhos passaram anos sem poder ao menos se despedir. Quando deixar de esperar pelo retorno? Qual é a hora de enterrar uma pessoa na própria memória?

    Embora o caso de Rubens Paiva tenha ganhado notoriedade pública, outras dezenas de milhares de pessoas desapareceram no mesmo contexto e penso que a história contada por Marcelo e adaptada por Walter Salles não se esquece disso. Ao escolher dar apenas “vislumbres” da tortura física propriamente dita, Ainda Estou Aqui deixa para a mente de quem está assistindo visualizar os cenários terríveis e lidar com o embrulho da incerteza, da ideia de que não saber o que realmente houve torna ainda mais difícil a missão de seguir em frente.

    Fernanda Torres é brilhante em Ainda Estou Aqui

    Bem, a essa altura, não há quem duvide do talento de Fernanda Torres e Ainda Estou Aqui vem colocar mais um marco nesse quesito. Aliás, talvez seja pouco escrever “mais um”. Ainda Estou Aqui é “o” grande marco (até então, é claro) dessa habilidade e versatilidade artística. Digo isso porque Eunice é uma personagem que não parece dar descanso à intérprete, em um sentido de que não notei passagens sem propósito, “à toa”.

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    Ao longo da história inteira, todo tipo de caos é colocado nos ombros dela: da tentativa de apaziguar a presença dos captores do marido dentro da própria casa ao controle do próprio desespero em nome do conforto emocional dos filhos. Todos esses fragilíssimos pratos são equilibrados com destreza. Fernanda Torres tem uma atuação dura quando precisa ser, vulnerável quando precisa ser, contida, imponente, branda quando precisa ser.

    A lista de elogios é longa mesmo porque fica com a atriz uma parte muito central da mensagem que Ainda Estou Aqui deixa para quem assiste: Eunice não deveria ter passado por nada disso e é inacreditável a transformação da própria dor.

    Após o desaparecimento do marido, ela também foi capturada e passou dias sob interrogatório policial até poder voltar para casa. Incansável na busca pela verdade sobre o paradeiro de Rubens, Eunice se formou em direito aos 48 anos de idade e se tornou um nome notável na defesa dos direitos humanos, incluindo participação no movimento de reconhecimento às pessoas desaparecidas no período da ditadura militar. A força com que Fernanda Torres apresenta a personagem impressiona e, com seu roteiro, trata com respeito a memória da família.

    E sim, caso você esteja se perguntando, Fernanda Montenegro está no filme como Eunice mais velha. No caminho para o desfecho, a trama tem dois saltos temporais de mais ou menos duas décadas que apresentam rapidamente a família naqueles períodos e passam muito brevemente pela atuação profissional de Eunice e pela vida dos filhos já adultos. Sim, eu gostaria de ver mais dessas fases porque são grandes pessoas transformadas em bons personagens, mas não acho que essa “ausência” seja uma falha, mas a escolha de um recorte em que não só a família, mas também a própria memória é um grande trunfo. E é sempre bom lembrar.

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