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    Eduardo Galeano Vagamundo
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Eduardo Galeano Vagamundo

    O mundo é feito de histórias

    por Bruno Carmelo

    O desenvolvimento do documentário a partir de uma entrevista parece uma tarefa arriscada – uma armadilha, na verdade. Felipe Nepomuceno tinha em mãos uma preciosa entrevista de Eduardo Galeano concedida ao pai do cineasta, Eric Nepomuceno. Mas como criar um filme sem se limitar aos temidos talking heads? Como acrescentar um olhar pessoal ao se apropriar do material de terceiros, e de que modo transmitir em imagens a poesia cotidiana dos textos do escritor uruguaio, falecido em 2015?

    O diretor decidiu articular o projeto em três caminhos paralelos: primeiro, as entrevistas são utilizadas apenas pelas respostas fluidas e atemporais de Galeano. Ao invés de contar a sua vida, ou explicar a sua arte, o protagonista evoca passagens, encontros, histórias ouvidas de terceiros. Segundo, personalidades leem curtos contos do autor, incluindo Mia CoutoPaulo José e Ricardo Darín, numa interpretação comovente. Para terminar, Felipe introduz suas criações próprias: trata-se de planos poéticos da natureza, ou de pessoas rodando pelos ares, num parque de atrações. A conexão com as histórias é mais metafórica do que propriamente referencial – estas cenas evocam um estado de espírito de liberdade que se comunica com os textos de Galeano.

    Talvez os principais méritos deste projeto provenham do próprio escritor. Ele demonstra uma desenvoltura ímpar na fala, articulando histórias com uma clareza e uma profundidade semelhante àquela de seus livros. Ao mesmo tempo, os trechos entoados por convidados comprovam a qualidade de uma literatura nem sempre valorizada nos altos círculos literários por sua brevidade, sua simplicidade e sua vertente espiritual – fala-se muito em “alma”, em natureza – que a tornam tão acessível ao público médio. Cabe a Felipe Nepomuceno a rigorosa curadoria dos trechos e dos leitores, além do senso de unidade que confere a trechos tão díspares uma mesma atmosfera, seja pelo ritmo contemplativo, seja pela coesão da fotografia em preto e branco.

    No que diz respeito à poesia acrescentada pelo diretor, é possível que a beleza dos trechos esbarre às vezes numa beleza fácil, padronizada. Os reflexos em poças d’água, as lágrimas caindo lentamente e a trilha sonora com famosas composições clássicas ao piano proporcionam certa autoria sem grande personalidade, uma noção de bom gosto e refinamento que não provoca os sentidos, nem desperta reflexão. Estes momentos servem para embalar o espectador, para conferir um aspecto lânguido desejado pela montagem – vide os longos e lentos letreiros – e principalmente para constituir uma antessala às leituras e depoimentos do próprio Galeano. O documentário rodeia o seu objeto de interlúdios.

    Ao final, o pacífico clima proposto por Eduardo Galeano Vagamundo pode despertar o desejo de revisitar os livros, retomar os textos completos do autor, tornar-se o próximo leitor após aqueles vistos em tela. Seria este o objetivo de Nepomuceno: utilizar o cinema para promover a literatura? De qualquer modo, o resultado se fortalece ao evitar a biografia linear do personagem. O escritor é valorizado por sua visão de mundo, por seu trabalho. Nepomuceno compreende que a homenagem afetiva tem a possibilidade de separar o autor da criatura: não é preciso endeusar Galeano, o indivíduo, para apreciar Galeano, o escritor. Nada melhor, para um artista, do que ser reconhecido pelo legado de sua arte.

    Filme visto no 28º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em agosto de 2018.

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