Quando eu era hippie
por Bruno CarmeloOs movimentos da contracultura no Brasil, desde o início da ditadura até as ideologias libertárias dos anos 1970, poderiam render uma leitura histórica, com dados, ferramentas de análise sociocultural, materiais de arquivo sobre a repressão dos militares aos artistas e opositores. A diretora Conceição Senna, no entanto, prefere uma abordagem pessoal: ela reúne seus próprios amigos, que viveram de perto a efervescência de drogas e amor livre, para recordarem os melhores momentos desta época. Para isso, concentra-se num período e local específicos: os anos 1970-1972, quando o grupo de reunia em torno do píer de Ipanema.
Anjos de Ipanema é construído em torno da nostalgia. Todas as vozes deste filme são tomadas de boas lembranças sobre a sua própria ingenuidade ou ousadia, dependendo do ponto de vista. Eles alternam lágrimas e risos para falarem daqueles bons tempos que não voltam mais, das experiências com LSD, da afronta ao conservadorismo. O melhor aspecto do projeto se encontra na evidente intimidade da cineasta com os entrevistados, o que garante trocas descontraídas, mais preocupadas em resgatar uma memória afetiva do que recordar com precisão os fatos. Senna abre espaço inclusive aos filhos destes artistas, para evocarem as suas infâncias ao redor de hippies. Além disso, revela o processo de construção do filme, incluindo a chegada das câmeras, os abraços da diretora com os amigos.
Em contrapartida, é difícil dizer que o resultado avance para além da mera reconstituição dos fatos. Os múltiplos depoimentos, somados, soam repetitivos, por se aterem a lembranças comuns, e por jamais investigarem as origens do movimento, nem a sua completa dissolução. O documentário opta por não se aprofundar nas circunstâncias exatas da ditadura militar, nas questões de classes sociais – a experiência certamente foi muito diferente para os jovens de classes desfavorecidas durante a mesma época -, ou ainda nas obras produzidas por este grupo de artistas. Sabemos que se reuniam, que eram “muito criativos”, como cita um entrevistado, no entanto os frutos dos encontros se atêm à troca de afetos dentro de uma coletividade.
Tecnicamente, Anjos de Ipanema transparece muitas fragilidades. A montagem limita-se a reunir as falas por temas – as drogas, o sexo, a ditadura, a depilação, e mesmo as risadas –, a luz é desigual ao longo das entrevistas, os enquadramentos parecem definidos pelo operador de câmera no calor do momento, sem preparação prévia. Além disso, não existe grande cuidado de direção de arte, nem mesmo de tratamento de som. Para completar, o filme decide efetuar curiosas transições com efeitos de fumaças coloridas, traduzir “Flower Power” ao espectador, como se o recurso realmente fosse necessário, e inserir análises questionáveis do movimento hippie pelo prisma do I Ching e da astrologia.
O resultado é certamente agradável, tendo despertado muitos risos na sala de cinema pela naturalidade com que os entrevistados falam de sexo e drogas, especialmente nos tempos obscurantistas em que vivemos. No entanto, o discurso articulado pelas imagens não sugere nada particularmente novo ou aprofundado sobre o seu tema. Este é um documentário de constatação: ele percebe que o movimento existiu, e foi bom; a ditadura existiu, e foi ruim; a reunião acabou, e deixou saudades. Trata-se de um conteúdo belo por seu humanismo, porém insuficiente como forma de cinema.
Filme visto no 28º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em agosto de 2018.