Corpo corrupto
por Bruno CarmeloO adolescente Denis (Denis Vlasenko) nunca fez sexo em troca de dinheiro - e talvez ainda não tenha feito sexo em circunstância alguma. Mesmo assim, em Jumpman, ele se prostitui de outra maneira, vendendo o corpo aos poderosos do sistema. Afetado por uma analgesia congênita (a incapacidade de sentir dor), o garoto aceita participar de um esquema para se jogar na frente de carros em movimento, para em seguida processar o motorista pelos danos físicos e morais. Médicos, juízes, advogados, policiais e mesmo a mãe de Denis estão envolvidos no esquema. A cada novo salto, os ferimentos se intensificam, mas o personagem não sente nada.
O diretor Ivan I. Tverdovsky oferece um retrato sombrio da Rússia atual, representando a decadência de valores através desta inusitada simbologia do povo oprimido. Ele apresenta a configuração social como um sistema pouco disfarçado, porém eficaz devido à impossibilidade de contestação. Nenhuma instituição protege Denis: os juízes veem nele um corpo lucrativo - afinal, o garoto se joga propositadamente em carros de pessoas ricas -, os policiais se divertem com o jogo macabro, os médicos são coniventes porque recebem uma parte dos lucros, e mesmo a família foi arruinada: o protagonista foi abandonado na infância, e quando é resgatado pela mãe, continua a sofrer abusos psicológicos.
O roteiro torna estas representações maniqueístas, perdendo sua potência em busca de uma vilania óbvia. Não basta que a mãe Oksana (Anna Slyusareva) seja irresponsável e interesseira, ela também manifesta comportamentos incestuosos com o garoto; não basta que o policial (Danil Steklov) pague pouco por cada golpe e trate Denis feito objeto, ele ainda precisa humilhá-lo, chamá-lo de “lixo” a cada imprevisto nos planos. As festas da alta sociedade são filmadas como seitas secretas regadas a champanhe, enquanto a câmera treme exageradamente, a luz pisca e a música pop-eletrônica cria um ambiente inebriante, hipnótico, avesso à reflexão. Somado às luzes neon dentro da própria casa, o estilo se preocupa demais em ser cool, jovem, ao invés de adotar um distanciamento em relação aos atos praticados pelos personagens.
O próprio protagonista é objetificado pelo roteiro, que não lhe confere qualquer conflito para além dos saltos, nem permite investigar elementos fundamentais de sua psicologia: o jovem não guarda ressentimento algum em relação à mãe que o abandonou? Ele jamais contesta o plano dos saltos? O corpo de Denis transforma-se na mistura entre um ser infantilizado e um super-homem, um encontro raro entre o corpo franzino e a habilidade/maldição de não sentir dor. Ele remete à Justine concebida pelo Marquês de Sade, aquela personagem ingênua, abusada por dezenas de pessoas em seu caminho, e inevitavelmente condenada à morte por sua pureza.
O projeto jamais desenvolve a contento a metáfora do corpo-máquina, ou ainda do fetiche sexual pela destruição do corpo, algo tão bem trabalhado em Crash - Estranhos Prazeres, por exemplo. Além disso, a ascensão e decadência do pequeno super-herói acontece de modo rápido demais, alheio às suas vontades e à sua história. Pela estrutura gradativa - ele salta com maior frequência, machuca-se cada vez mais - caminhamos a uma inevitável ruptura, alguma forma de explosão que impeça o círculo vicioso, pela morte ou pela fuga. Tverdosky encontra uma saída melancólica ao impasse, o que por um lado impede o ciclo de abusos, mas por outro lado não resolve nenhum de seus conflitos, como se o cineasta simplesmente abandonasse o jogo. Jumpman revela-se mais empolgante enquanto conceito e proeza técnica do que reflexão sobre uma sociedade deteriorada.
Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.