Existem filmes com grandes histórias contados de maneiras pouco atraentes; e existem aqueles filmes com histórias medíocres ou simples demais contadas de formas incríveis – nessa segunda categoria, eu colocaria trabalhos como Amnésia de Christopher Nolan ou até mesmo o filme de estreia de Steven Spielberg, Encurralado, como bons exemplos. E este novo trabalho do britânico Sam Mendes (de Beleza Americana e os dois últimos filmes de James Bond) se enquadra nesta última categoria – 1917 é, realmente, um filme de guerra com uma história bem convencional – mas o que garante seu brilho é justamente a maneira como é filmado – é um feliz exemplo de como algumas decisões estéticas e técnicas fazem a diferença para se contar uma história.
Mesmo utilizando um recurso não novo, como é o caso da filmagem toda em apenas uma tomada, sem cortes – é valido lembrar que o mestre do suspense Alfred Hitchcock já tinha feito algo assim em seu clássico Festim Diabólico, de 1948 – na verdade, assim como na obra citada acima, Mendes utiliza algumas trucagens e travellings para disfarçar os poucos cortes – mas nada disso tira o mérito desta decisão de concepção visual, que realmente auxilia o espectador a se sentir tenso como os personagens em tela, como se fosse um passo a passo, em tempo praticamente real, da jornada dos dois personagens principais.
Baseado em histórias que seu avó (que realmente lutou na guerra) lhe contou, o roteiro escrito pelo próprio diretor em parceria com Krysty Wilson-Cairns não é inteiramente baseado em fatos reais – todos os personagens são fictícios, na verdade – Mendes apenas se baseia em uma história parecida que seu avó lhe contou sobre um mensageiro – sendo assim, o longa nos apresenta aos soldados Schofield (MacKay) e Blake (Chapman), em abril de 1917, penúltimo ano da Primeira Guerra Mundial – ambos integrantes do exercito britânico, em batalhão próximo da fronteira com a inimiga Alemanha. O general do grupo (Firth) dá uma missão quase impossível aos dois: atravessar o campo de batalha a frente, a fim de enviar uma mensagem cancelando um ataque que seria feito por outro batalhão britânico em 24 horas, já que a recuada do inimigo se mostra como uma armadilha – além de precisarem andar por quilômetros de distância em lugares perigosos, com inimigos a espreita, a missão se torna ainda mais urgente para Blake, já que seu irmão está no batalhão que precisa ser avisado – e, caso fracassem, além de seu irmão, outros 1600 homens podem perder a vida.
É bom ressaltar que a decisão de filmar o longa como se fosse em uma tomada só não é um mero modo de se exibir tecnicamente – pelo contrario, dá muito folego e tensão a caminhada de Schofield e Blake, em corretas caracterizações de George MacKay e Dean Charles-Chapman – com o primeiro passando bem sua falta de ambição na vida, devido a frieza que adquiriu pelo tempo estando nos campos de batalha – ele parece não se importar mais com a família ou até mesmo pelas condecorações que recebeu por coragem antes; enquanto que o segundo precisa se conter para não demonstrar que está emocionalmente abalado por precisar correr contra o tempo para salvar a vida do irmão – como o filme não utiliza-se de cortes para mostrar os diálogos, Mendes tem tempo para desenvolver estas coisas através de sutis falas entre os dois, que mostram suas personalidades, mesmo que rapidamente, mas suficientes para nos identificarmos com eles.
Embora isso seja bem retratado, ainda assim, não é foco principal de 1917 – e mesmo que Sam Mendes queira expor o lado sem sentido de lutar na guerra – e isso não é algo novo também – o que realmente torna o filme fácil de ser seguido é o desenvolvimento da ação – como disse antes, a impressão é realmente de que estamos vendo tudo em tempo real, portanto, tudo se torna mais autentico e até realista – mas, convenhamos que isso não é um mérito do diretor – na verdade, o responsável por tudo isso funcionar lindamente em tela é o mestre diretor de fotografia Roger Deakins.
O cinematografo responsável pela fotografia de filmes como Um Sonho de Liberdade, Fargo e Blade Runner 2049, cumpre com esmero uma tarefa realmente difícil – pois pense que um filme com tomadas normais, ou seja, com vários cortes que duram alguns segundos às vezes, já seria algo complexo iluminar e enquadrar imagens abertas ao ar livre – em 1917, a maioria das cenas duram até 15 minutos – creio que essa é a média de tempo entre os “cortes disfarçados” – e como a câmera gira em 360° é impossível utilizar canhões iluminadores – se torna complicado até mesmo esconder microfones e outros utensílios da produção – outra proeza, por exemplo, é quando a câmera está a céu aberto, com imagens claras, e em seguida entra em locais fechados, como o interior de uma trincheira, iluminada a luz de velas – ou em como acompanha um personagem fugindo de um inimigo até encontrar outro nos escombros de uma construção e, sem cortes, mostrar apenas suas sombras duelando (sem desfoques de imagem, é claro) – além de uma cena que, provavelmente, será a mais lembrada de todas, que mostra o personagem de George MacKay correndo na frente das trincheiras, enquanto os demais soldados correm para outro lado – ponto realmente emocionante do filme – mas, eu ainda classificaria como uma verdade obra de arte o jogo de sombras que Deakins proporciona com as luzes de bombas e fogos durante a noite, formando assustadoras sombras com os escombros de uma bombardeada cidade – “pintura em movimento”, foi o que pensei quando vi.
Mas, evidentemente, quem também ajuda Deakins nisso é a equipe de efeitos especiais e de maquiagem – pois veja outra dificuldade para isso com a filmagem sem cortes – como maquiar um ator de uma hora pra outra, sem parar a filmagem para inserir sangue em suas mãos e roupas, por exemplo – a resposta vem do uso acertado de discretos efeitos especiais, praticamente imperceptíveis, que dão ainda mais urgência as cenas – a cena do avião caindo no campo é um exemplo disso – além dos efeitos que escondem bem os cortes – como quando Schofield pega uma carona em um caminhão aliado – minha única ressalva é um momento onde um certo personagem precisa dar um salto um pouco mais exagerado e o uso do CGI fica evidente – mas nada que anule a tensão que a missão dos dois soldados proporciona – e palmas também vão para o design de produção, que recria com perfeição os muitos metros dos campos de batalha – sem CGI – detalhando as trincheiras, campos destruídos e cheios de lama, proporcionando ainda mais realismo as sequências.
Ajudado por uma discreta trilha-sonora de Thomas Newman (tensa quando precisa ser e evocando emoção na hora certa), a produção ainda conta com ótimas pequenas participações de seus atores coadjuvantes – interpretando superiores dos dois personagens principais, Colin Firth, Mark Strong e Benedict Cumberbatch – e jamais deixa o tom patriótico tomar conta, como a maioria dos filmes de guerra de Hollywood costumam fazer – aliás, é bastante interessante o fato do filme quase não mostrar os inimigos – e, nas poucas vezes que mostra, fica evidente como o diretor não os demoniza, preferindo mostra-los apenas como pessoas que também lutavam por suas vidas em um conflito gerado por figuras que nem sequer pisavam no campo de batalha – Mendes insinua esta critica quando um arrogante militar aparece dando ordens sentado em seu confortável carro numa estrada.
Um trabalho que merece respeito pelo esforço de toda sua equipe, realmente – que, apesar de não ser marcante apenas por sua trama em si, é um conjunto muito bem feito de técnicas que proporcionam uma imersão real e angustiante do que seria percorrer quilômetros de distância de um campo de batalha na Primeira Guerra Mundial – e 1917 já pode ser dito como uma das melhores experiências do cinema em retratar este terrível conflito.