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    Hilda Hilst Pede Contato
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Hilda Hilst Pede Contato

    A imagem do som

    por João Vítor Figueira

    Romantizar a trajetória de um artista é uma tarefa fácil (e preguiçosa). Os momentos mais difíceis da vida de quem se dedica ao ofício criativo podem meramente ser encarados como um sofrimento que lapida a inspiração. Idealiza-se o dom, a dor. Entretanto, por mais belo que seja um quadro como A Noite Estrelada, a materialidade do tiro que Van Gogh deu em si mesmo por não conseguir se sustentar com a venda de seus quadros deveria servir como uma lição tão intensa quanto suas pinceladas. Nem mesmo o talento suprime as angústias. E qual angústia pode ser maior para um artista do que a vontade de ser reconhecido, ser descoberto?

    Dona de uma obra por vezes tida como maldita e sui generis na literatura brasileira, Hilda Hilst (1930-2004) tem sido alvo de um intenso interesse póstumo. Seus trabalhos em prosa e poesia têm despertado a atenção de jovens poetas, do mercado editorial e do mundo acadêmico. Essa nova redescoberta da escritora paulista pavimentou o caminho para a homenagem realizada para ela na Flip - Festa Literária Internacional de Paraty deste ano, onde o longa-metragem Hilda Hilst Pede Contato teve, adequadamente, sua primeira exibição.

    O filme de Gabriela Greeb (A Mochila do Mascate, Corpo Cidade) ressuscita a autora a partir de um recorte muito específico de sua trajetória: Entre 1974 e 1978 tentou conversar com mortos usando gravações de áudio para fazer a ponte entre os dois mundos. Do ato, que adiciona mais uma camada de folclore na coleção de folclores que circundam a aura da autora, brota agora uma ironia. Greeb se propõe a filmar o infilmável, filmar o som, filmar a voz, para fazer Hilda, do mundo dos mortos, se dirigir aos vivos.

    Hilda Hilst Pede Contato carrega, já em sua premissa, uma série de metáforas. O passeio pela voz de Hilst em seu afã por se conectar com o além pode ser visto como um comentário sobre a vontade que a escritora tinha, em vida, de ser lida e mais reconhecida pelo público. Por isso, o momento atual, potencializa o longa-metragem. Ela queria respostas de Vladimir Herzog, Franz Kafka, Clarice Lispector — e Greeb sabe como costurar um filme que nos faz querer mais respostas sobre Hilda.

    Averso ao didatismo, o longa se apresenta como uma experiência sensorial, para mal e para o bem. O que há de mais convencional aqui são os depoimentos de figuras próximas à Hilda. Em um primeiro momento, essas pessoas são filmadas em uma limousine preta, uma espécie de barca de Caronte que as leva até a Casa do Sol, refúgio artístico e pessoal da escritora onde compartilham de uma refeição onde lembranças do passado são servidas.

    Por um lado, é interessante que a forma hermética do longa-metragem tente canalizar a literatura etérea da personalidade que move o filme. Entretanto, enquanto algumas técnicas servem à proposta vanguardista, outras soam como distrações ou acabam se esgotando pela repetição. Um exemplo são as tomadas das fitas magnéticas espalhadas entre árvores que são filmadas enquanto são tocadas pelo vento. A tomada é, conceitualmente, sinestésica. A voz se materializa. Entretanto, ela se repete sucessivas vezes em um filme que tem apenas 73 minutos de duração. Há cenas com dramatizações em que a escritora volta à vida interpretada por Luciana Domschke quando Greeb lança mão de composições visuais estilizadas. Por vezes, a imagem na tela está tão customizada que mal é possível entender o que se passa. Em outros momentos, chama a atenção a sofisticação do trabalho de fotografia assinado pelo português Rui Poças, que em 2018 teve colaborações importantes em Zama e As Boas Maneiras.

    Para um filme que assume tantos riscos em sua estética visual (logrando êxito muitas vezes e derrapando em outras), é o som a propriedade que mais demanda do espectador. Para o sueco Friedrich Jurgenson, que inspirou Hilda a tentar gravar vozes do além, o sobrenatural podia ser capturado no chamado ruído branco. A trilha de áudio de Hilda Hilst Pede Contato ganha vigor no alto-falante do cinema. É uma verdadeira experiência sentir a textura do som e ouvir a maneira como Hilda esculpe suas palavras, num tom de voz que trafega que ganha contornos sublimes na proposta do longa-metragem. Para além dos registros em áudio, outro material de arquivo bem utilizado no filme é uma cena na qual Hilda, bem humorada, canta “You'll Never Know“, ou quando ela fita a câmera, sorri e mostra o dedo médio. As cenas são como âncoras que não deixam a obra flutuar apenas na exploração dos misticismos que envolvem Hilda e mostra também o lado humano — incluindo os depoimentos dos amigos sobre sexualidade.

    Entre erros e acertos, Hilda Hilst Pede Contato definitivamente é um filme que pede uma postura ativa do espectador, a mesma coisa que obra de Hilst demanda do leitor.

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