O mal-estar na civilização
por Bruno CarmeloHá algo estranho na vida de Janaína (Janaína Afhonso) e João (João Paulo Bienemann). Os dois amigos introvertidos, de ar soturno, mantêm poucas relações sociais, parecem não ter família, nem uma relação especial com os pequenos trabalhos que desempenham. Quando passam a morar juntos, após uma crise de epilepsia dela, a relação oscila entre a dependência e o desespero. “O João está cada vez mais estranho”, confessa a amiga preocupada. Ele não consegue parar de admirar, através da janela, o espaço imenso de uma cratera que engoliu uma rua de São Paulo.
A imagem da cratera é muito bem utilizada no filme. Os diretores Lucas Camargo de Barros e Nicolas Thomé Zetune partem dos fatos de 2007, quando uma falha na construção da estação Pinheiros do metrô levou a uma imensa cratera que matou sete pessoas e destruiu diversas casas. A gestão negligente do espaço urbano transforma-se em metáfora para o constante mal-estar dos personagens. Eles se sentem cada vez mais atraídos por este vazio, esta aberração na paisagem. O caos de São Paulo coincide com o caos de sua multidão anônima, massificada, oprimida. A transformação do acidente num desenho, e depois num quadro, completa o painel tragicômico da cidade indiferente a seus habitantes.
As aflições de Janaína e João são canalizadas em pulsões de vida (sexo) e de morte (assassinato, suicídio). O sexo de João com o namorado é completado pela sessão caseira de uma triste cena do filme Two People (1945), de Carl T. Dreyer, no qual dois amantes discutem o fim do relacionamento. Ao mesmo tempo, um grave acidente envolvendo o garoto desperta a libido de sua amiga, que passa a manter relações com um homem mais velho por quem não tem real interesse. Durante o sexo, ela enxerga o rosto do amigo gay e ouve seus gemidos de dor numa maca, aproximados do som de um orgasmo, ou ainda de alguma manifestação animalesca. A fuga, para esta dupla de jovens depressivos, se encontra no flerte com a perda da razão, a perda do controle.
O Pequeno Mal é um filme estranho, e plenamente consciente de sê-lo – ou, melhor dizendo, orgulho de sê-lo. Os diretores se empenham na criação de sugestões poéticas que não pretendem desenvolver ou esclarecer. A ideia é conduzir o espectador por um labirinto de diálogos raros e sussurrados, de atuações esvaziadas ou carregadas demais, de uma São Paulo vazia, sem rostos além dos três ou quatro principais, espremidos no formato de tela próximo do quadrado. O filme trabalha a constante dissociação entre os diálogos em off e as imagens fantasmáticas, permitindo que João seja valorizado no trabalho por sua “experiência na arqueologia afetiva da cratera do metrô”. Pelo registro naturalista e potente de Janaína Afhonso, combinado com os olhos arregalados de João Paulo Bienamman, próximo da loucura, percebemos a busca pelo valoriza o dissonante, o atípico, aquilo que quebra expectativas.
Tamanho apreço pelo estranhamento funciona muito bem em termos de atmosfera, mas não contribui ao andamento de uma narrativa que, apesar das aparências, possui uma condução linear. As diversas passagens de tempo são trabalhadas de modo confuso – vide a evolução do quadro clínico de João -, a voz de uma narradora em off aparece e some de modo pouco coeso, a trilha sonora altera registros tão distintos que poderiam pertencer a obras diferentes. Rumo à conclusão, ao invés de amarrar as suas pontas soltas, o projeto acrescenta bifurcações ao caminho. É muito prazeroso se perder na jornada urbana destes personagens à beira do abismo/cratera, embora não se chegue necessariamente a algum destino.
Filme visto no 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em setembro de 2018.