O protocolo e a exceção
por Bruno Carmelo“Eu amo o teatro. É uma grande aventura”. A frase inicial deste documentário, pronunciada pelo próprio Terrence McNally, nos prepara para o pior – afinal, existe fala mais óbvia para apresentar um dramaturgo? A música alegre, os múltiplos elogios de personalidades e os vídeos de premiações prenunciam o típico documentário-homenagem, do tipo que idealiza seu objeto de estudo ao invés de dissecá-lo, humanizá-lo. O diretor Jeff Kauffman teria algo a mais a dizer para além da constatação do gênio, da citação às peças consagradas como "O Beijo da Mulher Aranha" e "Ou Tudo Ou Nada" e a citação ao ativismo LGBT?
Felizmente, a má impressão se dissipa um pouco. O tom laudatório permanece ao longo da narrativa, porém se equilibra com relatos de eventuais fracassos na carreira do artista, de seu caráter obsessivo com a escrita, dos relacionamentos fracassados que viveu com outros escritores de grande porte como Edward Albee. Em outras palavras, Terrence McNally aos poucos se transforma numa pessoa com qualidades e falhas, além de ser alguém cujo status foi construído gradativamente, ao invés de um súbito golpe de sorte. Ainda que adote uma inabalável linearidade, o filme consegue enxergar certo relevo na trajetória que vai da infância perturbada à consagração na fase adulta.
Talvez um dos aspectos mais notáveis do documentário seja a realização enquanto o protagonista ainda se encontra em vida, o que permite trabalhar não apenas com entrevistas de terceiros e imagens de arquivo, mas também a voz do próprio McNally narrando sua dependência do álcool, as críticas negativas e a pressão para ocultar sua homossexualidade durante os anos 1950. Assim como nos melhores documentários, o diretor percebe que a história de seu personagem só ganha profundidade quando associada com a história de um país e uma sociedade precisas, num período determinado. Sempre que a progressão de McNally é associada à evolução da Broadway ou à proliferação do vírus do HIV nos Estados Unidos, o projeto se torna mais interessante.
Além disso, o roteiro desempenha um bom trabalho ao mesclar as experiências de vida de McNally (seus namoros, o câncer de uma pessoa querida, a relação difícil com a mãe) com os textos escritos para os palcos. Dispondo de atores de peso como Nathan Lane, Christine Baranski e F. Murray Abraham para as entrevistas, o cineasta aproveita para propor releituras dos textos, destacando trechos ou personagens que se conectem de modo mais ou menos explícito com a história do escritor. É ótimo que vida e arte se confundam e se entrelacem, sem que um necessariamente se sobreponha ao outro – afinal, a predileção pela vida pessoal não raro se traduz em projetos de cunho sensacionalista, enquanto aqueles interessados apenas na carreira profissional tendem a adotar a linearidade em estilo Wikipédia, saltando de proeza em proeza.
Apesar das qualidades, Uma Vida por Trás da Cena preserva uma estrutura um tanto impessoal. Trata-se de uma maneira de enquadrar, iluminar e principalmente montar que reproduz o formato mais gasto das reportagens televisivas. Os rostos placidamente colocados ao canto do enquadramento, com um letreiro indicando nomes e funções na parte “vazia” da imagem, combinados com música banal de transição e certo gosto por frases de efeito simplificam uma trajetória complexa. O documentário oscila entre a vontade de esclarecer e homenagear, a tendência a investigar ou convencer. Se conseguisse adotar uma linha de discursiva única, permitindo o acaso e não apenas selecionando os trechos mais potentes cada conversa, soaria ainda mais realista, simples e humano. Nada elucida melhor o pioneirismo de um gênio do que inseri-lo, por contraste, no contexto comum ao qual pertence.
Filme visto no 26º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2018.