A melancolia do artista
por Bruno CarmeloTalvez o primeiro elemento a ressaltar neste documentário seja o fato que o escritor Dalcídio Jurandir, o motor narrativo da trama, não está presente em imagens. A diretora Letícia Simões aposta numa arriscada representação pela ausência: a diretora lê as cartas do artista à esposa e os relatórios acadêmicos dos tempos de inspetor escolar, mas reserva à imagem uma profunda solidão. O espectador é confrontado às águas do rio Tapajós, aos homens que passam em seus barcos, à vegetação local, às casas de palafitas. O projeto é impregnado por um sentimento de desolação.
Felizmente, a cineasta possui ótimo senso de composição, capaz de sustentar esteticamente a obra conceitual. O Chalé É uma Ilha Batida de Vento e Chuva traz imagens bem construídas em termos de enquadramento e luz, mesmo partindo de uma produção limitada. A beleza não aparece como vaidade ou finalidade em si: ela serve ao ritmo da narrativa e à representação da tristeza deste homem afastado da família, condenado a exercer um trabalho de que não gosta por obrigações financeiras. A diretora inclusive se arrisca em câmeras lentas aplicadas a imagens já bastante lentas, produzindo uma artificialidade à beira da abstração, num efeito curioso para um projeto de registros tão naturalistas.
Ao mesmo tempo, a narração das cartas e relatórios de Dalcídio produz certa estranheza. A entonação se faz um tanto fria, pouco “interpretada”, como numa leitura branca. Além disso, o som da narração em off é muito mais alto do que os ruídos locais, de modo a se destacar totalmente daquele meio, sem imergir na natureza ou se fundir a ela. É esperado que retratos sem apoio de imagens do biografado carreguem um aspecto fantasmático, no entanto o protagonismo da narração impede que o resultado se torne ainda mais etéreo. Com este estilo de narração, talvez a diretora perca em atmosfera, mas ganhe no destaque à palavra escrita, algo condizente com o retrato de um escritor.
Outro elemento dissonante diz respeito aos depoimentos. Os entrevistados nunca estão confortáveis diante das câmeras, fornecendo respostas tímidas, truncadas, como na cena dos três colegas de turma, esperando cada um a sua vez de falar sobre os planos para o futuro. As perguntas (“Vocês gostam de Cachoeira?”) tampouco permitem um aprofundamento nos anseios e dificuldades dos moradores do norte do país. O professor de uma escola em dificuldade financeira discorre sobre a penúria local como quem dialoga com um repórter de televisão. Esse registro contrasta com a fluidez das imagens da natureza, e com a proposta poética em geral. Ele serve, talvez indiretamente, a demarcar a distância que separa os moradores do extremo norte do país dos demais cidadãos, que conhecem esta região com um olhar estrangeiro.
O Chalé É uma Ilha Batida de Vento e Chuva se destaca principalmente pelos ecos encontrados entre épocas distintas: o cenário desolador constatado por Dalcídio em 1939 e aquele, igualmente deficitário, percebido por Simões oitenta anos mais tarde. As descrições sobre a precariedade das escolas se mantêm intactas várias gerações depois, e as principais passagens narradas pelo escritor encontram um paralelo direto com a vida cotidiana dos moradores do século XXI. Paira a sensação de uma temporalidade estagnante, ou talvez circular, que se muda sem se transformar de fato. O filme transparece o caráter quixotesco da pedagogia em zonas afastadas e da literatura como profissão de subsistência, dois temas particularmente relevantes ao Brasil contemporâneo.