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    Marcha Cega
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Marcha Cega

    Teatro do desastre

    por João Vítor Figueira

    Junho de 2013 está para o Brasil assim como Maio de 1968 está para a França. Ambos os meses representaram um período de convulsões sociais e políticas em seus contextos e geraram debates ainda abertos sobre seus efeitos enquanto suas consequências ainda podem ser sentidas. No caso das manifestações que começaram com reivindicações contra o aumento das passagens nas capitais do Brasil e evoluíram para algo que ainda hoje se tenta compreender com exatidão, é concreto dizer que as passeatas serviram para evidenciar diante de câmeras de TVs corporativas e das lentes de celulares em registros amadores uma postura brutal das forças policiais em todo o país.

    Enquanto determinados grupos da população compram a ideia fácil de que apenas os "vagabundos" apanham da polícia em manifestações, o documentário Marcha Cega assume uma postura crítica e militante na direção oposta. Dedicado a entender a lógica por trás da repressão aos movimentos populares em São Paulo a partir das Jornadas de Junho — passando pelos protestos contra a Copa do Mundo em 2014, as ocupções de escolas por estudantes secundaristas em 2015 e os protestos contra o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 — o filme se apresenta como uma obra que enriquece o debate sobre segurança pública no país. Conciso (com 88 minutos de duração), o longa dirigido por Gabriel Di Giacomo conjuga relatos pessoais de vítimas de violências e arbitrariedades durante protestos com depoimentos de advogados, socorristas e cientistas políticos.

    Em contraste com o minimalismo dos depoimentos (as figuras humanas são enquadradas em plano médio diante de um fundo preto e iluminadas por uma luz levemente vermelha em possível alusão à sirene), a montagem contrapõe essa estética séria e austera com breves inserções de registros caóticos das ruas, em um quase jump scare.

    Entre as falas das vítimas, chama a atenção o caso do fotógrafo que perdeu a visão ao ser atingido por uma bala de borracha no olho durante uma manifestação em 2013, o que inicia um debate sobre todas as normas de segurança que não são cumpridas pelas forças policiais em situações do tipo (incluindo aquela que diz que os projéteis de borracha devem ser disparados à certa distância dos manifestantes e nunca na direção da cintura para cima). Paralelamente ao seu depoimento, um breve momento de poesia visual se constrói na tela quando a câmera filma uma intervenção urbana em sua homenagem. Outros respiros do tipo teriam sido muito bem vindos no filme que se sustenta muito nos enquadramentos de "cabeças falantes". Em outra fala, uma militante negra que foi espancada chama atenção para o racismo estrutural e para o completo descaso ao relatar sua jornada para tentar prestar queixa contra os policiais que a agrediram.

    Eventualmente, o uso de cartelas informativas em documentários pode ser entendido como uma preguiça do realizador de articular um discurso através da flexão de imagens. Entretanto, em Marcha Cega esse recurso é utilizado de forma crítica ao inserir na tela ao longo da projeção uma série de normas que fazem parte de regimentos internos da Polícia Militar e contrapô-las com o que acontece na prática nos protestos.

    No sentido analítico, quem mais enriquece o longa-metragem com suas reflexões é o antropólogo Luiz Eduardo Soares, especialista em segurança pública que levanta alguma das pautas mais relevantes do documentário. É ele quem se propõe a avaliar o DNA ideológico da corporação e argumenta que cenas de violência em protestos não são fruto de falta de preparo, mas sim consequência de uma visão de que o dever da corporação não é servir e proteger a população, mas sim exterminar o inimigo, como uma herança dos tempos da ditadura militar no Brasil.

    Um ponto importante que Marcha Cega toca mas não se aprofunda é a função da grande imprensa na construção e legitimação de um discurso que favorece a violência policial contra manifestantes. Um interessante recurso usado por Di Giacomo no filme consiste em exibir trechos de telejornais em televisores antiquados para simbolizar o conservadorismo do jornalismo corporativo. Em uma dessas inserções, é representativo ver a apresentadora Renata Vasconcellos gaguejar durante uma edição do Jornal Nacional ao dar mais ênfase no fato de uma vidraça ter sido quebrada durante um protesto do que ao dano humano causado pelos excessos das forças policiais, exibidos no noticiário da TV Globo, mas ignorados pela jornalista.

    A ausência de depoimentos que contrastem com a visão do diretor faz falta ao projeto. Seria interessante ver como policiais da ativa envolvidos em conflitos com manifestantes ou articulistas com visões ideológicas diferentes da apresentada pelo filme argumentariam. Apesar desse espaço para o contraditório, Marcha Cega constitui um bom passo rumo a um amadurecimento de um debate importante.

    Filme visto no 22º Cine PE – Festival do Audiovisual, em junho de 2018

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