Sofrimento de verdade
por Bruno CarmeloExiste uma corrente do cinema de ficção bastante preocupada com a transmissão de uma verdade. Para estes diretores, o mais importante é a impressão de não-simulação, ou seja, fazer com que o corpo do ator sofra tanto quanto o personagem. O valor, neste caso, é calculado pelo distanciamento em relação à aparência de ficção. Se a alegria, o amor e mesmo a tristeza podem ser facilmente representados em atuação, a dor do corpo maltratado, em planos únicos, é mais difícil de ser falseada. É esta verdade que Ayka busca transmitir ao espectador.
A jornada da protagonista Ayka (Sama Yeslyamova) constitui um calvário de grandes proporções. Esta jovem cazaque acaba de dar à luz, mas abandona o bebê num hospital de Moscou por não ter condições de criá-lo, e por ter medo de ser descoberta e deportada. Em seguida, sofre com hemorragias internas, dores nos seios, o frio nas ruas, a fome, a sede, o descaso das pessoas ao redor, os maus-tratos no cortiço onde dorme, a desonestidade dos patrões, os mafiosos cobrando dívidas. O roteiro apresenta um périplo de sobrevivência sem perspectivas de saída. Estamos na ordem da brutalidade: a personagem se limita a um corpo em fuga, que permanece em silêncio por não poder contar com a solidariedade de ninguém.
O diretor Sergey Dvortsevoy tenta estar o mais próximo possível do sofrimento, em longos planos-sequência, com a câmera tremendo bastante entre o rosto angustiado, o sangue no meio das pernas, a coluna curvada de dores. O olhar onisciente sobe e desce escadas, atravessa avenidas, entra e sai de cortiços, restaurantes e clínicas veterinárias, enquanto inclui outros elementos difíceis de falsear: o choro de bebês num hospital, cachorros doentes sangrando pelo chão, filhotes tentando amamentar nas tetas feridas e sangrentas de uma cadela. Neste momento, a câmera se aproxima, faz o foco nas patas do bicho, nas unhas entrando na ferida, nas gotas de sangue que escorrem do animal.
“Está vendo como é real?” parece dizer, a cada cena, as imagens de Ayka. Mas tamanha fixação no martírio como sinônimo de verdade transmite a incômoda impressão de sadismo. A protagonista interessa ao projeto menos por sua individualidade, seus desejos, sua personalidade, do que como corpo sofredor. Ela funciona como exemplo de refugiada, de mulher pobre em condições degradantes. “Mas isso acontece com várias pessoas, todos os dias!”, defendeu o cineasta durante a coletiva de imprensa, em Cannes. Não há dúvida de que existam pessoas em situações análogas, e que seus dramas mereçam ser representados através da arte.
A questão, no entanto, se encontra no modo como a jornada é contada. Dvortsevoy conquista algo eficiente em termo de provocação. Seu cinema adquire um funcionamento análogo ao das imagens de pulmões escurecidos nos maços de cigarro: causam repulsa, mas não impedem ninguém de fumar. Isso porque não temos uma conscientização política, uma discussão social, uma mínima empatia com a vítima. Estamos no terreno do choque, do enfrentamento direto com o espectador e com a personagem. Em nome de uma verdade maior, o cineasta sacrifica a sua personagem, sacrifica a possibilidade de reflexão – como discutir a situação de refugiados diante de tanto sangue, suor e secreções? – e se assemelha ironicamente a estes personagens que viram as costas à pobre refugiada.
Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.