Impressiona que os dois melhores filmes do ano, até o momento, insiram-se em algo que podemos importar da literatura: a autoficção. Depois do comovente e perfeito relato de Alfonso Cuarón de sua infância na Cidade do México, no inesquecível Roma; eis que Pedro Almodóvar, de quem sou confesso fã e que já vi toda filmografia, nos presenteia com seu melhor filme. Dor e Glória possui todos os ingredientes da melhor safra da profícua lavra do espanhol. Para início de conversa, tem um roteiro daqueles que faz do prosaico, do coloquial, algo extraordinário, em alguns momentos beirando o surrealismo. A paleta cromática cara ao pintor está presente e cada detalhe da direção de arte de María Clara Notari e da fotografia espetacular de José Luis Alcaine reproduzem com apuro e sensibilidade o universo de Almodóvar, já uma alcunha dentro do panteão cinematográfico. Absolutamente autoral e inconfundível! E um deleite estilístico que traduz com perfeição sua alma espanhola e suas referências artísticas e gostos. Nada ali está por acaso e tudo demonstra sua erudição no mundo das artes, como um todo. Um outro ponto alto do filme é o uso espetacular da metalinguagem, recurso que nada possui de gratuito e reforça o aspecto com o qual inicio o texto, reforçando que o protagonista Salvador Mallo é o alter ego do diretor espanhol. Um aspecto bem irônico reside no nome da personagem, famoso diretor em crise criativa, já que “malo” adjetiva em espanhol o salvador, o redentor. Almodóvar faz uma narrativa nada linear em que presente e passado revezam-se no decorrer da história, sob eflúvios opiáceos da heroína, utilizada para diminuir as dores crônicas do corpo e alma. O desejo e a relação com as mulheres, especialmente a onipresente e onipotente figura da mãe, reaparecem em sequências dó de peito, transbordantes de lirismo e pungentes, portanto antológicas. E o que dizer do elenco? Almodóvar sabe escolhê-lo como ninguém e extrair atuações geniais, ainda que em pontas, como a diva Cecilia Roth. Penélope Cruz (a mãe Jacinta), para variar, está perfeita e mais linda que nunca, merecendo já ser por tanto tempo a grande musa do cineasta. Leonardo Sbaraglia (Federico), também em pequeno, mas importantíssimo papel, mostra o porquê de ser um ator tão requisitado em produções espetaculares, já que é extraordinário. A surpresa, dado que o desconhecia, foi a presença Asier Etxeandia (Alberto Crespo) que tem atuação forte e cheia de personalidade e participante de uma das mais belas cenas do filme, quando representa em um teatro uma peça com texto de Salvador Mallo. E naquela que talvez seja sua melhor performance, Antonio Banderas protagoniza de forma arrebatadora, com sofisticação na montagem da personagem. Este filme é tão rico em informações e possibilidades que se imagina que pelos menos mais dois filmes poderiam nascer de suas entranhas e dado o resultado primoroso e inesquecível, nos resta apenas esperar que o futuro venha a nos brindar com mais um momento Almodóvar, que transforma em puro prazer a experiência cinematográfica. Imperdível!