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    Compra-me um Revólver
    Críticas AdoroCinema
    2,5
    Regular
    Compra-me um Revólver

    Os bons e os maus selvagens

    por Bruno Carmelo

    “México, data indefinida. Tudo, absolutamente tudo é controlado pelos cartéis. A população diminuiu devido à falta de mulheres”. Os letreiros de abertura acenam ao mesmo tempo ao realismo e à fantasia; ao drama contemporâneo e à catástrofe futura. Em meio a dezenas de gângsteres armados, nossos protagonistas parecem ser as duas únicas pessoas que fogem à dinâmica de opressão: no caso, a pré-adolescente Huck (Matilde Hernandez), vestida de homem para passar despercebida, e seu pai, o zelador de um campo de beisebol onde os traficantes treinam. Eles vivem o tempo presente, tentando sobreviver dia após dia contra os ataques inevitáveis, sem qualquer perspectiva de mudança no horizonte.

    Por um lado, o ambiente pós-apocalíptico soa uma ótima escolha para representar a realidade sociopolítica brutal, sobretudo pelos olhos de uma criança. O aspecto fabular provoca ao mesmo tempo o distanciamento em relação à barbárie e o reforço da mesma – vide a imagem aérea de uma planície coberta de cadáveres, representados por cartazes de papel no chão. Existe um cuidado estético evidente nas cenas fluidas acompanhando os personagens em planos ininterruptos que valorizam tanto a corporalidade quanto os espaços, ambos essenciais à trama. Trabalhar longos diálogos com crianças em plano-sequência representa uma escolha arriscada que, no entanto, rende bons frutos graças à direção segura de Julio Hernández Cordón.

    Por outro lado, os caminhos da narrativa são tão áridos quanto incompreensíveis. A trajetória de pai e filha entre os lobos move-se apenas pelas decisões ruins ora de um, ora da outa. Em alguns momentos, a garota desrespeita as ordens do pai de ficar escondida e se expõe ao perigo. Depois, é a vez de o pai tomar atitudes inverossímeis que colocam a garota diante dos inimigos. Com uma postura tão imprensada, surpreende que sobrevivam neste cenário durante tanto tempo. Outras questões importantes são deixadas sem resposta: as outras crianças, amigas de Huck, possuem famílias? As mulheres desaparecidas fugiram por conta própria, foram sequestradas? Quando são reencontradas, elas são mortas, estupradas, escravizadas pelos homens? Por que o pai jamais planeja uma fuga, depois de tudo que os carrascos fizeram à sua família?

    Pela decisão de se ater apenas às ações ao invés da psicologia, Compra-me um Revólver não desenvolve elementos essenciais de sua distopia. O filme não acena nem ao passado (o que havia antes desta oligarquia mafiosa?), nem ao futuro (há perspectivas de transformação?), desprezando a investigação do poder no tempo presente (existem outras facções além desta que frequenta os campos de beisebol? como se organizam?). O ponto de vista é igualmente disperso: ora enxergamos o mundo pelo olhar da garotinha – o que justificaria o desconhecimento de regras sociais, graças à ingenuidade infantil -, ora a câmera abandona Huck para apresentar, de um ponto de vista exterior, a chegada dos músicos à festa. Ora partimos à magia da infância (a fumaça roxa, a máscara no rosto, o proto-tanque de guerra), ora nos atemos à crueza da imagem (a criança acorrentada, o braço decepado, a privada pós-diarreia). Indecisa, a direção não se aprofunda em nenhum dos dois registros.

    Enquanto isso, o projeto sustenta uma curiosa visão sobre a natureza humana. Parte do filme defende o mito do bom selvagem, segundo o qual o ser humano nasceria puro até ser corrompido pela natureza. As diversas cenas de crianças brincando, e depois manuseando armas e treinando para fugir de um possível sequestro, permitem esta leitura. Huck se especializa em encontrar drogas que garantem o sustento (e o vício) do pai, mas ainda encara parte da agressividade como uma brincadeira, um faz de conta, por não compreender totalmente os mecanismos do poder. Outra parte do drama sustenta a tese de que o ser humano é naturalmente agressivo, predatório e competitivo, algo perceptível pelo caráter indistinto dos mafiosos, meros arquétipos de uma virilidade latina, e mesmo das crianças. Nenhum deles se transforma ao longo da narrativa: os vilões permanecem vilões, as vítimas continuam vítimas.

    Movidos por decisões súbitas, sem desejos nem planos para o futuro, os personagens se tornam palpáveis, próximos da realidade, porém um tanto superficiais. Os atores desempenham seus papéis com competência, inclusive o elenco mirim, embora não tenham a oportunidade de subverter os tipos que representam (pai protetor, filha em perigo, mafioso perverso). Compra-me um Revólver caminha rumo a um desfecho abrupto, pouco convincente, e sintomático da dificuldade de Cordón em propor uma reflexão a partir desta brutalidade. O filme constata um cenário de opressão e o descreve muito bem, através de imagens elegantes e coesas. Mas que crítica elas teceriam sobre os cartéis reais, a masculinidade tóxica, a opressão feminina, o valor simbólico das armas? O projeto relega ao espectador aspectos do debate que ele precisaria, pelo menos a título inicial, estimular por conta própria.

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