Pensemos a Índia hinduísta como uma cultura com mais de quatro mil anos de história. Ora, tradição, neste contexto, é algo tão duro quanto um diamante para ser quebrada. E o melhor do ótimo filme indiano A Costureira de Sonhos, é justamente mostrar o peso desta tradição em contraste com uma sociedade que se insere no contexto de economia globalizada, urbana, capitalista. A diretora e roteirista Rohena Gera (que com ele conquistou o prêmio da Fundação GAM na última edição do Festival de Cannes), constrói uma deliciosa e preciosa fábula urbana passada na cosmopolita Mumbai e protagonizada por uma mulher, viúva, de origem rural. Com isso ela confronta a tradição com a modernidade e elabora uma feliz arquitetura de disparidades tanto de realidade econômica e social, quanto de valores e comportamentos. Mais interessante ainda é justamente verificar através de suas bem construídas personagens, o quanto a Índia contemporânea, como um todo, padece de desconforto nesse hiato, consciente de que as mudanças são irreversíveis, mas o caminho ainda é instável e tortuoso, com avanços e retrocessos constantes. Uma dança em que o bailado necessita de passos para frente e para trás para manter a evolução com graça. As situações, inúmeras, criadas durante a projeção, são perfeitas na elucidação das diferenças que pontuam a história, centrada na relação de Ratna e Ashwin, que assumem a função de arquétipos de feminino e masculino; rural e urbano; pobre e rico; pouco estudo e formação no exterior; que por força de circunstâncias vão se aproximando, mas não se mesclam, como uma comédia romântica faria supor ao final. Contudo tornam-se indissociáveis, transformando-se em metáfora do paradoxo da sociedade indiana e seus conflitos. Um filme que foge ao exotismo imagético comum ao olhar ocidental e nos apresenta sim, algo colorido e rico em sabores de especiarias e aromas, mas longe dos clichês, com ambientes modernos, que poderiam colocar a história em qualquer lugar do mundo, e mesmo a ampla utilização do anglicismo no linguajar das classes privilegiadas. O próprio título “Sir”, que reflete o processo de ocidentalização a partir do domínio britânico e subjuga a doméstica Ratna ao patrão Ashwin é prova incontestável desta premissa básica. Além de inteligente, fluído, bem fotografado e construído, A Costureira de Sonhos é delicioso de assistir e tem os ingredientes otimistas que se espera do gênero, com uma “heroína” que enfrenta com galhardia seu status quo e conquista, com verossimilhança, seu lugar ao sol. Ou melhor, sua vista de Mumbai do alto (forte imagem). O trabalho da atriz Tillotama Shome (Ratna) é espetacular e Vivek Gomber (Ashwin) cumpre bem seu papel coadjuvando neste primor de filme que tem no feminino seu ponto alto, seja qual for o aspecto observado. Imperdível!