Corpo delito
por Bruno CarmeloNa cena inicial, Sofia (Maha Alemi) tem fortes dores na barriga. Descobrimos que ela está grávida, e a bolsa acabou de estourar. A família não sabia da gravidez e, aparentemente, a própria jovem desconhecia a sua condição, bem ocultada pelas roupas largas. Adentramos o projeto através do thriller: a diretora Meryem Benm’Barek é hábil em construir um suspense com tons policiais, pois sabemos que a jovem não é casada e, de acordo com as leis islâmicas, poderia ser presa devido ao sexo extraconjugal. Como ela vai esconder o bebê? Como ocorrerá o parto? De que maneira a família vai reagir quando descobrir? Como a garota conseguiu ocultar a gravidez durante tanto tempo?
O terço inicial adota ares de ultrarrealismo, com a câmera tremida na mão, luz natural, personagens correndo de porta em porta, hospital em hospital, até resolver a situação. A protagonista transforma-se num corpo sofredor e mártir, assim como o bebê que, ao invés de alegria, simboliza sua desonra e possível exclusão social. Curiosamente, a história não é contada pelo ponto de vista dela: a personagem tímida confessa muito pouco sobre o pai da criança, dificulta a vida dos médicos, não coopera com a prima que tenta lhe ajudar. Vendo-a de fora, Sofia torna-se hermética, um fator acentuado pela atuação emburrada de Maha Alemi, com o olhar ora ausente, ora torturado.
Aos poucos, a narrativa se transforma. O filme ameaça explorar a negação da gravidez como caso clínico, mas abandona esse caminho. Depois, sugere a possível retaliação das famílias em função do bebê, mas aborta a possibilidade. Em seguida, acena ao conflito de classes devido à distância que separa a classe média de Sofia, a classe desfavorecida do pai do bebê, Omar (Hamza Khafif) e a classe abastada à qual pertence a prima, Lena (Sarah Perles). No entanto, estes rumos são suspensos. Benm’Barek deve ter efetuado diversas mudanças em seu roteiro, de modo que meia dúzia de linhas narrativas é relegada a pano de fundo. À medida que a narrativa aumenta o peso de Omar, de Lena, da tia Leila (Lubna Azabal), o projeto adquire maior escopo sociológico, porém perde Sofia de vista. A jovem torna-se cada vez opaca, ora passiva demais, ora agressiva e pragmática.
Esta sensação decorre da transformação de sua protagonista no sintoma de uma crise de costumes: ninguém ganha com esse arranjo artificial de corpos e afetos, que leva a tantos casamentos sem amor, filhos não desejados e desejos reprimidos. Traçando um painel de desolação generalizada, Sofia revela-se cada vez mais cínico, disposto a conferir um final amargo a todos os personagens, em oposição ao happy end esperado. Enquanto isso, a câmera se torna fixa e frontal, como se acusasse cada personagem durante os diálogos, e a montagem caminha rumo a um clímax profundamente irônico, no qual uma festa reúne diversas pessoas descontentes por trás dos sorrisos falsos. Algumas reviravoltas surpreendentes encarregam-se de deixar as perspectivas futuras mais desagradáveis.
Recompensado no festival de Cannes pelo roteiro, Sofia deve ser apreciado ou rejeitado por este aspecto: o texto em constante transformação, capaz de detectar diversas falhas no sistema sem saber exatamente de onde vêm, nem como se ligam umas às outras. Ele se sobressai no retrato do papel feminino, seja para retratar mulheres que lutam contra o sistema opressor ou aquelas que se esforçam para preservá-lo. No entanto, demonstra pouco afeto pelos personagens, incluindo a protagonista vista como misto de vítima e algoz, perversa ou sobrevivente. Meryem Benm’Barek critica a objetificação das mulheres, embora não necessariamente transforme a sua personagem em sujeito. Do início ao fim, tentamos compreender o rosto indecifrável da jovem, sem saber o que está pensando, o que deseja. Terminamos a experiência sem saber quem ela é.