Tem gente que desaparece
por Bruno CarmeloQue maneira curiosa de falar sobre aquele momento da História. Você sabe, aquele momento na América Latina em que uma “intervenção” mudou as regras da sociedade, e de repente você não dizia tudo o que pensava, e as pessoas se sentiam vigiadas, e algumas fugiam para não voltar mais. Dizem que foram passear, ou ficaram doentes, mas muitas pessoas nunca mais apareceram. Enquanto isso, os Estados Unidos pareciam tão solícitos, a mídia local fazia apenas questões otimistas e inofensivas aos líderes, e a corrupção desapareceu porque se parou de falar nela, certo?
Vermelho Sol apresenta uma maneira brilhante de falar sobre a ditadura, sem falar sobre a ditadura. Ou melhor, ele retrata o clima de paranoia, os incômodos nas reuniões sociais, a agressividade represada, mas prestes a explodir a qualquer momento. O diretor Benjamín Naishtat trabalha essa época em que as relações de dominação do poder institucional eram evidentes para todos, mas constituíam um tabu grande mais para ser verbalizado. Como a trama acompanha o conflito pelo lado dos poderosos – o advogado interpretado por Darío Grandinetti, o policial encarnado por Alfredo Castro, o empresário vivido por Cláudio Martinez Bel – as coisas não precisam ser ditas pelo nome, apenas sugeridas e consentidas tacitamente. Encontramo-nos no terreno da banalização do mal, da normalização da barbárie.
Esse clima de tensão é retratado com impacto impressionante na cena inicial dentro de um restaurante. Uma pequena provocação entre dois homens escala para a violência verbal, a humilhação, e enfim a violência física em grau impensável. O momento é filmado com estranheza pelo cineasta, incluindo desfoques artificiais, aplicados em pós-produção, e extremos close-ups de Claudio em primeiro plano, com o corpo do adversário no fundo do quadro. Nada é natural neste momento, como se o diretor tomasse distância em relação à violência retratada. O início em modo Relatos Selvagens simboliza à perfeição o caldeirão social deste período de “intervenção provinciana”, como chama o governo.
Dali em diante, Vermelho Sol se constrói inteiramente em torno de símbolos, através de esquetes praticamente desconexas que, aos poucos, costuram uma narrativa linear. Cada momento é recheado de metáforas de agressão, de sedução e do desaparecimento – seja pelo show de mágica, pelo eclipse do sol, pela arma no vestiário, e mesmo pelas moscas e perucas. O roteiro é marcado por um cinismo profundo, uma espécie de humor disfarçado de horror – ou seria o contrário? O encontro entre Grandinetti e Castro, dois excelentes atores, gera faíscas excepcionais na narrativa. Mesmo sugerindo uma carnificina, Naishtat ainda sabe que o imaginário de cada espectador é capaz de completar as sugestões de modo muito mais eficaz e perverso do que qualquer imagem faria, privilegiando portanto as insinuações.
Com a ação situada em 1975, pouco após o fim do regime militar na Argentina, e com uma textura de película destinada a imergir o espectador na estética e temática de décadas atrás, o projeto trata não apenas de demarcar um distanciamento com o tempo presente quanto de comparar ambos os períodos. Por não citar governantes ou militantes específicos, torna-se amplo o suficiente para representar outros casos de opressão contemporâneos, em países vizinhos da América Latina. Não é difícil se identificar com esta “luta contra um mal maior”, motivando violações de direitos devido ao medo de viver num país “sem leis, nem Deus”, como afirma Sinclair (Castro). Apesar dos pesares, apesar do medo geral e dos cadáveres que aparecem pelo deserto, as pessoas ainda vão aos restaurantes, ainda jogam tênis, ainda assistem a espetáculos de teatro. As instituições funcionam perfeitamente.
Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.