Há filmes que evocam tantos sentimentos, que apenas em imagens nos fazem sentir o que é a sétima arte. Esse é um desses. O movimento de câmera, as cores, os atores, a montagem, figurino, o roteiro, a trilha sonora, ou seja, tudo funcionou e nos trás a um filme sublime, simples, grandioso e que nos faz refletir tanto sobre a vida quanto a verdadeira essência de um filme.
O filme conta a história do Sr Chow (Tony Leung) e da Sra Chan (Maggie Cheung) em 1962, ou seja, época da Revolução Cultural na China. Duas pessoas que por uma coincidência da vida se encontram e apesar de casados desenvolvem um amor recíproco, inesperado. A vida deles é bastante semelhante. Tanto quanto a ausência dos cônjuges em suas vidas há também o lugar em que comem todos os dias. É claro que cada um precisa do outro para preencher um vazio que há dentro deles. Não importa quem deu o primeiro passo o fato é que esse amor já aconteceu. Efêmero ou não eles precisam se apoiar. A partir dessa história embarcamos na vida dessas duas pessoas que irão viver uma das mais belas histórias de amor do cinema.
Reparem como há uma troca de olhares desde o começo. Como o olhar é a janela da alma, os dois atores conseguem exprimir algo tão real, humano que facilmente esse amor transcende a tela da TV e entra no cotidiano que só uma vida fora das telas pode expressar. Cada palavra que o casal protagonista profere tem um sentimento. Cada movimento já nos traduz sentimentos que estão passando na cabeça de cada um. Desde fumar um cigarro a apenas o colocar a cabeça no ombro do outro. Seus sentimentos são expressos sem nem dizerem uma palavra, sem verbalizá-lo, basta concentrarmos em seus rostos.
O roteiro é enxuto. Quando alguém tem algo a dizer é para impulsionar a trama para frente. Cada diálogo provoca reflexões sobre a vida, sobre casamento (mais do que isso, sobre relacionamentos em geral), sobre o que os outros podem pensar de nós enquanto tomamos decisões. A trilha sonora é extremamente sentimental. Experimente ouvi-la fora do filme. Você vai perceber que você não vai ouvi-la somente, vai senti-la. O figurino que compõe a personagem de Maggie Cheung é lindo e deixa-a mais atraente do que já é. Na montagem não ficou nada que não precisa estar no filme. Tudo que foi descartado nessa etapa foi essencial para deixar esse filme tão poético (vejam as cenas excluídas).
O diretor Wong Kar-Wai coloca a câmera em posições que remetem a situação que eles passam. Por exemplo: quando ela está no quarto dele com ela e ela não pode sair, pois há pessoas do lado de fora, a câmera está escondida, capturando aquele momento que ninguém mais pode saber. Outro momento que destaco é filmá-los entre grades. Eles estão presos a algo ou a alguém. O que dizer do momento em que, apesar de estar em cidades diferentes, a câmera filma um e depois outro separados por um cômodo. Apesar de estarem longe um do outro, eles estão tão conectados, pensando um no outro, que estão pertos.
O que falar das cores? Os vestidos dela são coloridos. A composição dos quadros também. Reparem como cada cena é preenchida com algum elemento que tenha a cor verde em várias tonalidades. Atrelo esta cor mais a personagem. Quando resolvem se encontrar, quando estão tomando um chá, a câmera desliza até a mão dela e percebemos que a cor da xícara é verde. Em seguida é a vez dele. E qual é a cor? Verde. Interpreto quase como uma comunhão entre eles. A partir dali eles se entregam um ao outro. É lindo demais. Os dois mundos se unem. A carência de cada um é preenchida.
Algumas pessoas vêem nesse filme parte de uma trilogia do diretor. O primeiro foi Dias Violentos, o segundo este e o terceiro 2046 Os Segredos do Amor (e qual é o número do quarto onde eles se encontram?). O próprio diretor diz que não. Eu acho que também não. Ele sobrevive facilmente sem os outros. Até prefiro ele assim. Não fazendo parte de nada para se compor, porque ele se compõe sozinho. Assim cabe a nós eternizá-lo como uma das mais lindas histórias de amor do cinema da mesma maneira em que o Sr Chow faz ao confidenciar em um buraco das ruínas de um templo o amor que eles viveram e em seguida tampá-lo, guardando para sempre esse relacionamento.
OBS: 2046 também representa o ano em que se encerra o prazo dado pela China para que o governo independente de Hong Kong se adapte e realize a integração oficial ao país