Como os gênios trabalham?
por Bruno CarmeloPioneiro. Sofredor. Sedutor. Satânico. Louco. Workaholic. Brilhante. Manipulador. Mentiroso. Todos esses adjetivos são utilizados para descrever Ingmar Bergman neste documentário que se interessa menos aos filmes do que às condições que possibilitaram o surgimento dos mesmos. Como o diretor conseguiu fazer tantos filmes excelentes em um curto espaço de tempo? De onde veio a inspiração; como apareceram os temas? De que maneira ele compunha a imagem, trabalhava com a luz, instruía seus técnicos? O documentário nutre uma ambição cinéfila muito saudável, buscando compreender o mecanismo do talento ao invés de apenas reforçar a genialidade de Bergman.
A principal qualidade de Bergman - 100 Anos se encontra na extensa pesquisa efetuada pela diretora, jornalista e crítica de cinema Jane Magnusson sobre o universo ao redor do diretor. Através de uma montagem fluida e uma narração didática, somos apresentados aos principais filmes, os colaboradores regulares, os temas favoritos, as esposas e amantes, as brigas no set de filmagem, as dores de barriga, as pernas inquietas. O projeto mistura fatos e sensações, história e anedotas pessoais. Descobrimos, por exemplo, que Bergman detestava legumes, consumia obsessivamente uma única marca de biscoito, exigia iogurte sempre à disposição, gritava caso houvesse barulho no set.
O resultado alterna o social e o psicológico, costurando uma infinidade de detalhes na busca utópica pelo germe da criatividade. Bergman é dissecado como um objeto ao microscópio, um espécie único, precioso, que conteria em si segredos sobre a arte, o cinema, a criação. O recorte é preciso: o roteiro parte do momento em que ele já é famoso e respeitado na intenção de destrinchar a imagem do diretor, ao invés do próprio diretor. Estamos no limite do overanalyzing, da atribuição excessiva de significados a coisas que podem, afinal, ser anódinas. Mas a escolha da interpretação em detrimento da idealização constitui um ótimo ponto de partida.
Além disso, o documentário adota com grande apetite todas as ferramentas possíveis de leitura. Sugere que Bergman utilizava o cinema para lidar com seus traumas de infância e com o comportamento autoritário do pai; que as dores no estômago são de ordem psicossomática, devido ao “medo de não ser bom o bastante”; que a descartabilidade nos relacionamentos afetivos reflete a velocidade espantosa com que passava de um projeto ao outro; que a qualidade das obras é diretamente ligada ao clima de agressividade instaurado durante as filmagens.
Inúmeras provas são fornecidas pela combinação de entrevistas de Bergman, trechos de seus filmes, depoimentos de pessoas próximas, imagens dos bastidores. A principal tese do projeto diz respeito ao caráter autobiográfico da filmografia de Bergman, e embora o tema possa ser debatido em sua pertinência – o reflexo da personalidade do autor não seria um traço comum a todos os autores, por definição? –, ao menos Magnusson fornece uma defesa coerente de cada um desses pontos. Quando ouvimos o próprio irmão do diretor admitindo ter forçado o pequeno Ingmar a comer minhocas, e depois nos deparamos com uma cena idêntica nos filmes de Bergman, a relação entre vida e obra se torna evidente.
Na ânsia pelo convencimento, Bergman - 100 Anos não escapa a uma retórica contestável. “Bergman é o diretor mais famoso do mundo”, informa a narração. Ora, em que dado o texto se baseia para lançar uma afirmação tão categórica? “O Sétimo Selo representa o interior de Bergman”, sustenta a mesma voz off, com uma certeza inabalável. Ambas as teses, e dezenas de outras presentes sobretudo no terço inicial, são defensáveis, mas se enfraquecem pela sugestão de uma verdade única ao invés de se assumirem como opiniões e demonstrações de um gosto pessoal. O projeto não apenas sugere leituras, como propõe algumas interpretações “corretas”, ao contrário de outras que seriam, consequentemente, erradas. Existe menos espaço para debate do que para a entrega de uma conclusão preestabelecida.
A narrativa também se torna excessivamente elogiosa rumo ao final, quando o equilíbrio entre razão e emoção pende em favor da última, com direito a frases de efeito como “Nunca mais veremos um artista tão grande na Suécia. Ele é maior do que Strindberg”. Nestes instantes, a potente trilha sonora orquestrada entra em cena, e algumas lágrimas (de Liv Ullmann, especialmente) se encarregam de sensibilizar o espectador, sugerindo que talvez o gênio possa sim, ser desculpado pelo mau comportamento, pois teria crédito em função da qualidade de suas obras. As regras morais, para os homens admirados, seriam mais flexíveis. Podemos imaginar como o ano de 2018 trataria um homem como Bergman, em meio aos movimentos Me Too e Time’s Up...
O filme se conclui de maneira competente, extensiva – ostensiva, até. Bergman - 100 Anos constitui uma espécie de blockbuster do documentário, muito bem dirigido e editado, com uma quantidade impressionante de recursos de linguagem e produção, além de acesso aos materiais mais raros, às personalidades mais raras em depoimentos (Lars von Trier, Barbra Streisand). Magnusson teve a possibilidade de fazer o filme que quisesse, demonstrando uma grande ambição que tanto favorece quanto prejudica o resultado. Aos cinéfilos mais ferrenhos, talvez o roteiro inclua poucas imagens dos filmes - clássicos como O Sétimo Selo, Morangos Silvestres, O Silêncio e Fanny e Alexander são exibidos em trechos curtos – mas para quem quiser adentrar a complexa personalidade de Ingmar Bergman, o projeto não deixa a desejar.