Diante da dor dos outros
por Bruno CarmeloFilmar é um ato violento, lembra a narração deste documentário. De fato, Cristiano Burlan tem se dedicado não apenas a filmar atos de violência, mas expor aquelas que afetaram diretamente a si mesmo e a sua família. Depois de evocar a morte do pai em Construção (2006) e o assassinato do irmão em Mataram Meu Irmão (2013), o cineasta investiga o assassinato da mãe em Elegia de um Crime. Isabel Furlan da Silva foi morta pelo namorado, asfixiada dentro de sua própria casa. Hoje, o responsável pelo crime está solto, vivendo numa região próxima. Mas quando Cristiano liga para a polícia, indicando o paradeiro deste homem, a iniciativa não rende frutos.
A noção de violência, portanto, vai além do crime em si. O projeto aborda as violências da impunidade, do feminicídio, da culpabilização da vítima, da insensibilidade da mídia, do descaso policial, além da dores de ainda ter à disposição o quarto incendiado pelo agressor, no qual Isabel dormia. Em outras palavras, a dor dos símbolos e ícones. Sobram as fotos, as lembranças, os retratos. Burlan, quase sadicamente, pede aos familiares e conhecidos que descrevam não apenas a mãe, mas os detalhes da morte. Ele se coloca no quadro, ao lado de cada pessoa, ouvindo estoicamente os fatos e assistindo em silêncio aos choros dos outros.
Em comparação com os filmes anteriores da trilogia, aqui o nível de autoexposição torna-se mais chocante e questionável. Burlan evidentemente não manipula a câmera durante os relatos, pois se encontra ao lado dos familiares, mas se posiciona ao mesmo tempo próximo e distante demais destas pessoas. A não-interferência nos depoimentos - o filme troca o diálogo pela escuta empática - aproxima o projeto de um documentário-verdade, porém a presença física em cada enquadramento, usando a mesma camisa verde (como se tudo tivesse sido captado de uma vez só) implica uma proximidade quase asfixiante. Os enquadramentos muito próximos dos rostos sublinham a intimidade escancarada, sem pudores. A lágrima em close-up, na tela gigante do cinema, adquire o valor muito diferente de uma lágrima furtiva na vida real.
O espectador encontra-se numa posição igualmente curiosa. Ora o questionamento das violências propõe uma importante reflexão, ora o material imerge no puro domínio dos sentimentos, quando o espectador se transforma em voyeur do sofrimento alheio. Nos instantes de choro, a câmera sempre próxima não permite olhar para nenhum outro elemento na imagem que não seja a dor. Os planos longos durante os depoimentos fazem com que as confissões dolorosas se arrastem, se repitam. Esta é uma forma de cinema bruto, tanto pela noção de realismo e naturalismo quanto pela agressividade.
Filmar é de fato um ato violento, como diria a narração inicial, porém existem muitas maneiras de fazê-lo. O caráter invasivo do relato é de certo modo atenuado pela permissão das pessoas e pela exposição igualmente cruel do próprio diretor. Por não se ocultar por trás das câmeras, o enfrentamento soa eticamente justificado. Estamos próximos da noção terapêutica de expurgo através do enfrentamento do trauma, ou da ideia de elevação espiritual pela catarse, como previam os ensinamentos aristotélicos da arte, porém adaptados à realidade das periferias brasileiras no século XXI.
O documentário torna-se moralmente contestável quando Burlan parte para a ficcionalização de sua própria história, anunciando-se como possível vingador da morte da mãe. A trilha sonora embala cenas do diretor treinando tiro ao alvo, com ótimos resultados, antes de partir, munido da arma, em direção ao assassino. Ele envolve uma repórter no ato perigoso - mais uma vez, o consentimento dela pretende isentar o cineasta pela responsabilidade de colocar outra pessoa em risco em nome do filme - e cria uma versão de si mesmo como justiceiro. Burlan diz ao policial, no início: “Dane-se o filme!”, o que importa mesmo seriam a justiça e a verdade, porém a câmera nunca para, transforma-se em reportagem, busca o perigo retratado para o prazer - voyeurista, novamente - do público.
Elegia de um Crime consegue amenizar a defesa do “olho por olho, dente por dente” rumo ao final, com uma cena de conclusão cuidadosamente orquestrada, de modo a retirar a liberdade do gesto. O documentário permanece preso entre duas esferas, nunca plenamente conciliadas: por um lado, a espontaneidade do choro diante de fotos e túmulos, por outro lado, a orquestração pouco espontânea de enquadramentos e cenas. Ou ainda a oposição entre o controle (estético) e o descontrole (emocional), ambos percebidos como virtudes a alcançar.
Filme visto no 23º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, em abril de 2018.