O massacre da justiça
por Bruno CarmeloO noticiário sensacionalista popularizou o imaginário dos confrontos armados nas favelas como algo indispensável ao estabelecimento da ordem. “Após intensa troca de tiros, policiais matam três traficantes na favela da Maré”, “Criminosos são detidos por forças policias em Manguinhos” e manchetes semelhantes sugerem a existência de duas forças opostas, uma da legalidade, outra da ilegalidade, enfrentando-se de igual para igual nos bairros pobres das grandes cidades - porque bairros ricos jamais vivem as mesmas circunstâncias.
Este documentário sugere que a imagem de bandidos armados diante de policiais armados é, em muitos casos, falsa. Pior do que isso, ela leva à criação de uma cultura de depreciação da juventude negra favelada, considerada suspeita até que se prove o contrário. Em Auto de Resistência, os diretores Natasha Neri e Lula Carvalho se debruçam sobre diversos casos em que jovens das periferias do Rio de Janeiro foram assassinados por policiais, sem terem o menor envolvimento em práticas criminosas. Os julgamentos escancaram uma série de irregularidades por parte da polícia: provas plantadas contra as vítimas, depoimentos incoerentes e mentirosos, abuso de poder, a defesa de que policiais deveriam ter o “direito de matar”, sem o qual não poderiam desempenhar a profissão.
O filme poderia se concentrar apenas na exposição das injustiças. Neste caso, ele não seria muito diferente do noticiário sensacionalista citado acima. Felizmente, o discurso dos diretores vai além: a dupla pretende não apenas denunciar um sistema judicial corrupto, mas também expor de que modo estes crimes atormentam as famílias das vítimas muito tempo após os fatos. Além da dor da perda, o próprio julgamento expõe estas pessoas a um processo massacrante, no qual mães, pais e irmãos são obrigados a recontar os fatos dezenas de vezes, enquanto ouvem as desculpas mais esdrúxulas dos policiais e seus advogados. “Eles não eram criminosos, mas poderiam ser”, argumenta a defesa de policiais que mataram garotos inocentes.
Em pleno período de luto, as famílias são obrigadas a conviver com um segundo assassinato, o da reputação das vítimas, agora descritas como traficantes, criminosos, mesmo sem o menor indício para tal. As imagens de Marielle Franco em protestos contra o genocídio nas favelas relembram como a máquina gira em liberdade, fazendo cada vez novas vítimas, e depois tratando de difamá-las para se justificar e evitar a revolta popular. Felizmente, o documentário sabe dosar muito bem as imagens-choque, fruto de um cuidadoso trabalho de pesquisa, com instantes cotidianos nas vidas dos familiares, ou trâmites legais expondo os recursos da promotoria e da defesa.
Auto de Resistência efetua uma bela parceria com O Processo, outro filme sobre a maneira como os argumentos legais servem para criar uma falsa impressão de justiçamento e para preservar o poder das instituições dominantes. Em comum, este filme e o projeto sobre o julgamento de Dilma Rousseff demonstram a capacidade de ouvir ambos os lados, embora manifestem um posicionamento político inequívoco. Neri e Carvalho ainda acreditam no poder da argumentação, no momento em que lados opostos do espectro ideológico gritam um com o outro, sem se escutar. Os cineastas discutem igualmente o poder da imagem como prova, na época de fácil distorção de registros.
O resultado é comovente e provocador, por evidenciar um sistema tão escancaradamente falho. Dentro da sala de cinema, os espectadores riam de nervoso diante de um policial se defendendo de ter plantado uma arma na mão de um garoto morto “por medo que ela disparasse no seu peito, apenas para a segurança dos policiais”. Apesar das fartas evidências a favor das vítimas, 98% dos casos contra policiais são arquivados, e nos 2% restantes, muitos correspondem a absolvições. Mais do que o retrato da impunidade institucional, o filme efetua uma leitura contemporânea da banalização do mal, a desumanização do pobre, negro e favelado no Brasil.
Filme visto no 23º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, em abril de 2018.