Todos os homens de Anna
por Bruno CarmeloA personagem de Leon Tolstói, foco de um dos romances mais famosos do século XIX, demora para aparecer nesta adaptação cinematográfica. Depois de uma apresentação com música folclórica e de um longo plano-sequência passeando pelos feridos da guerra, somos apresentados a dois homens: Sergey Karenin (Kirill Grebenshchikov) e o conde Vronsky (Max Matveev). O que une os dois é Anna Karenina (Elizaveta Boyarskaya), mãe do primeiro e antiga amante do segundo. O filho tenta compreender através do suposto inimigo os motivos da morte de sua mãe. “Mas o que garante que eu vou dizer a verdade?”, responde o conde, desconfiado. “Me conte a sua verdade”, replica Sergey. O desejo de uma nova ficção, mais do que de uma verdade absoluta, move o questionamento do filho e também o projeto como um todo.
O aspecto mais interessante do drama russo é a releitura de uma obra clássica através de outros personagens, no caso, os principais homens da vida de Anna. Além da dupla citada acima, o marido Karenin (Vitaliy Kishchenko) e o irmão Stiva (Ivan Kolesnikov) compõem o grupo de figuras envolvidas com a protagonista. Por um lado, a ousadia do roteiro permite enxergar a tragédia de Anna por um ângulo inédito. Por outro lado, corre o risco de retirar o protagonismo feminino e interpretar a vida da heroína pelo prisma dos desejos masculinos, o que poderia soar redutor, ou mesmo retrógrado, diante do pioneirismo da obra original e das exigências de representatividade dos nossos tempos.
O projeto contorna este dilema de maneira razoável, fazendo com que Anna permaneça o motor de ação, uma espécie de núcleo em torno do qual os homens orbitam. Nenhuma reviravolta ocorre sem as decisões de Anna, que permanece uma figura misteriosa. Boyarskaya reforça o lado instável da personagem, ora agressiva, ora passiva. O afeto de Anna Karenina nunca é plenamente satisfeito: ela deseja ter o amante, mas quando pode tê-lo, não o quer mais. Ela luta pelo divórcio, e quando o conquista, não pretende mais se separar. A personagem se mostra tão descontente consigo mesma que não consegue amar quem quer que seja. A adaptação preserva a importante ideia de que a felicidade feminina não está necessariamente atrelada à conquista de um príncipe (ou conde, no caso).
Embora a ciranda de amores, traições e chantagens seja bem retratada pelo diretor Karen Shakhnazarov, que decide esticar a duração (138 minutos) para incluir o máximo de conflitos possível, o mesmo não pode ser dito do tratamento imagético. A História de Vronsky retoma o romance por uma perspectiva nova, mas reproduz os prazeres cristalizados do filme de época. O cineasta resgata a pompa dos grandes bailes, quando ocorre a importante dança entre Anna e Vronsky, além da orquestra insistente na trilha sonora, o fetiche dos palácios decorados, dos vestidos ornamentados. Neste sentido, a estética não se atualiza: o projeto pretende impressionar pela embalagem lustrosa, filmada de maneira convencional.
Uma bela cena se destaca, constituindo provavelmente o melhor momento do filme: sozinha durante a ópera, Anna encara os olhares reprovadores da sociedade russa, enojada de dividir o espaço com uma mulher adúltera. O jogo de espaços e os movimentos de câmera são excelentes, percorrendo praticamente todos os cômodos no intervalo de uma apresentação musical. De resto, Shakhnazarov investe em tours de force que beiram o kitsch - vide a corrida a cavalos em câmera lenta, os diálogos explicativos (“Hoje é o meu aniversário”, diz Anna a um interlocutor que está plenamente consciente desta data) e a função questionável de Chun-sheng, órfã de guerra utilizada unicamente para humanizar o conde através da vocação paterna.
Anna Karenina - A História de Vronsky se conclui como uma obra curiosa, ainda que pela metade: inovadora no conteúdo e convencional na forma, ela deixa a impressão de que a relação da personagem com a contemporaneidade poderia ser explorada de maneira mais radical, e que mesmo a visão sobre os homens poderia trazer maior complexidade. Afinal, a interpretação de uma obra do século XIX no próprio século XIX, e sua releitura em pleno século XXI possuem valores muito distintos. Ainda assim, Boyarskaya, Matveev e Kishchenko conferem ao texto a solenidade e a evolução de personagens que devem agradar os fãs de Tolstói.