Filme-terapia
por Francisco RussoSe a arte serviu muitas vezes como expiação de demônios internos, Shia LaBeouf alcançou uma faceta poucas vezes vista, ao menos para alguém de apenas 33 anos: estrelou sua própria cinebiografia. Não interpretando a si mesmo mas a seu pai, artífice tanto de sua ascensão quanto da derrocada como ator, devido aos muitos traumas sofridos que resultaram no vício em álcool e comportamento arredio, especialmente ao se tornar uma estrela de Hollywood. Mais que o batido clichê de não ter suportado a pressão, há neste relacionamento um histórico de problemas que, além de levantar questões acerca da busca pela fama em plena infância, ainda rende um filme bastante intenso.
Em parte, porque Shia resolveu não esconder o jogo com o que lhe aconteceu. Decidido a transformar Honey Boy em uma necessária sessão de terapia, ele não só escreveu o roteiro autobiográfico como ainda assumiu o desafio psicológico em interpretar aquele que tanto lhe afetou quando jovem. Tamanho peso norteia todo o longa-metragem, não apenas pela inevitável conexão entre a dureza de seus atos e o fato de estar retratando algo que realmente lhe aconteceu, mas também porque Shia decide não demonizá-lo. Por trás deste homem bruto e exigente há também um sofredor de suas mazelas, em um processo de humanização que torna ainda mais impactante a dualidade existente no jovem Otis em relação a como enxergar o próprio pai. "Ele não é o motivo de beber, é o motivo de trabalhar", diz o ator já adulto, em meio ao sempre difícil processo de autocompreensão.
Entretanto, não é só. Para conduzir esta história bastante delicada, Shia contou com o essencial auxílio da diretora Alma Har'el, que trouxe um bem-vindo sopro de criatividade. O melhor exemplo é a ótima sequência de abertura, onde realidade e ficção se misturam tendo por background a própria filmografia de Shia, em especial a franquia Transformers. Sem qualquer imagem na tela, o mix de sons emitidos que remetem a um videogame diz muito sobre a construção de blockbusters na Hollywood atual, assim como o grito "por que estou aqui?" tanto indica os problemas que serão melhor retratados mais adiante como, também, uma certa perdição artística em meio aos filmes de ação. Ou seja, pessoal e profissional sendo postos em dúvida, simultaneamente, com muita habilidade.
A partir de então, Honey Boy se dedica muito mais à construção deste ambiente familiar do que propriamente a questionamentos à indústria cinematográfica. Sem medo do politicamente incorreto e com um roteirista/protagonista que não deseja amenizar o tema, Har'el investe firme na crueza de palavras e atos, estabelecendo um relacionamento que sobrevive na base do confronto e da intimidação. A esperta montagem transita bem entre passado e presente, oferecendo ao espectador a possibilidade de comparar os traumas já estabelecidos com o momento em que são implantados no inconsciente do jovem Otis. Não por acaso, cabe ao correto Lucas Hedges a faceta mais revoltada do personagem, enquanto que com o dedicado Noah Jupe pode-se encontrar (ainda) alguma ingenuidade e um lado sonhador, em parte devido à descoberta do amor - visualmente bem sexualizado, mensagem implícita enviada pela diretora.
É nesta transição entre causa e efeito que se sustenta o longa-metragem, muito calcado na persona explosiva do próprio pai, torto em sua essência. Se este já seria um personagem riquíssimo para qualquer ator, com Shia sua relevância transcende a atuação para alcançar uma densidade bem maior, no âmbito psicológico. Entretanto, é preciso também dizer que, nesta ânsia em fazer as pazes com o próprio passado, o filme busca um desfecho menos complexo do que poderia, especialmente levando-se em consideração o exibido até então.
Ainda assim, trata-se de um filme que merece especial atenção não apenas pelo surgimento de uma diretora com boas ideias para auxiliar a narrativa mas, também, pelo seu peculiar pano de fundo. Não é sempre que vemos uma cinebiografia tão honesta, ainda mais com tanto que há ao redor.
Filme visto no Festival de Toronto, em setembro de 2019.