Baby, I love you
por Aline PereiraSintetizar uma pessoa em um filme é o desafio número um no gênero das cinebiografias, especialmente porque os protagonistas dessas histórias estão lá justamente porque suas passagens pela vida foram grandes acontecimentos. É o caso de Gal Costa: como explicar 60 anos de carreira (e DESTA carreira) em duas horas? Não dá. E talvez aí esteja o principal trunfo de Meu Nome é Gal: parece até pouco o que vemos dela, mas a abordagem carinhosa e o tom de homenagem não deixam dúvidas sobre a importância deste legado.
Em Meu Nome é Gal, Sophie Charlotte (Todas as Flores) interpreta “a melhor cantora do Brasil” (palavras de ninguém menos do que João Gilberto), em um período de tempo marcado pela repressão da ditadura militar e pela formação da Tropicália, movimento cultural revolucionário do qual Gal Costa era uma grandes representantes, ao lado de grandes nomes como Gilberto Gil (Dan Ferreira) e Caetano Veloso (Rodrigo Lélis) – este último, um dos maiores amigos, incentivadores parceiros profissionais e, arrisco dizer, alma gêmea artística da cantora.
Em entrevistas, Gal Costa já havia contado que, quando criança, costumava cantar com a cabeça enfiada dentro de panelas em sua casa – assim, conseguia se ouvir e treinar a própria voz, os tons e a respiração. O filme das diretoras Lô Politi e Dandara Ferreira (que também assina o documentário O Nome Dela é Gal) relembram essa passagem, mas o foco da trama, definitivamente, não é dar uma geral na vida de sua protagonista e, ao contrário, temos uma lupa muito bem definida.
O recorte escolhido por Meu Nome é Gal é o do final da década de 1960 e o início dos anos 1970, sob o cerco fechado do regime militar no Brasil. Foi neste período de repressão, por exemplo, que nasceram algumas das grandes canções que ficaram conhecidas na voz da cantora – é de se emocionar e sorrir em silêncio a cena em que Caetano Veloso ensina à amiga a letra da inesquecível canção “Baby”, que viria a ser um dos maiores sucessos dos dois mais tarde.
Com o recorte temporal tão bem delimitado, talvez o público que já não tenha alguma familiaridade com a história da cantora saia da sessão sem sentir que conseguiu conhecê-la de forma tão pessoal. Não à toa, no filme, há uma cena em que Gal fica irritada quando uma jornalista a questiona sobre sua vida pessoal. “Não tem muito mais do que isso não”, responde a artista. Com todo o perdão da ousadia, peço licença para discordar de Gal: para mim, ali, parece existir uma pessoa mais do que interessante, sensível, profunda e, claro, imensamente talentosa.
Por outro lado, nesse tópico, me vem à mente uma fala da co-diretora Lô Politi em entrevista ao AdoroCinema. “Se você ouvir, em ordem, a discografia da Gal, a história dela está ali”, me disse. Penso que essa fala também tem a ver com todo o contexto apresentado ali: em tempos de ditadura, o movimento da Tropicália, definitivamente, não tem a ver apenas com a música, mas com toda uma quebra de paradigmas de comportamentos, cultura, subversão e evolução – elementos que também fazem parte da história de Gal Costa.
No longa, fica clara a importância do relacionamentos de Gal Costa em seu crescimento como artista. E que amizades! Boa parte da nata da música popular brasileira está presente de alguma maneira no filme e o destaque é Rodrigo Lélis em uma personificação de Caetano Veloso que é idêntica, tanto em termos de semelhança física, quanto na linguagem de uma figura tão conhecida.
Nesse ponto, talvez esteja a maior “novidade” para o público: na vida de Gal existiram algumas figuras menos conhecidas publicamente, mas que são peças fundamentais em sua história. É o caso de Guilherme Araújo (Luis Lobianco), empresário que apostou no talento daqueles jovens artistas e fez os investimentos certos para projetá-los – nada do estereótipo de empresário crápula que já vimos algumas dezenas de vezes.
Na figura de mentor e cérebro “estratégico” em meio a tantas almas artísticas, foi Guilherme, por exemplo, quem deu a Maria da Graça Penna Burgos Costa o apelido de Gal (uma abreviação, como ele brincava, para “Guilherme Araújo Limitada”). O humor de Lobianco, que está presente em seu personagem, até causa um estranhamento no tom geral da cinebiografia a princípio, mas a força de um personagem autêntico compensa.
Há também destaque para Dedé Gadelha, grande amiga de Gal e esposa de Caetano, interpretada por Camila Márdila. Em um meio predominantemente masculino, Dedé era não só uma companhia importante para Gal, como também um membro especial daquele grupo – não estava em cima dos palcos, mas a mente estava sempre um passo à frente. Tenho uma admiração pelo trabalho de Camila desde Que Horas Ela Volta? e temos aqui mais uma atuação poderosa em sua firme sutileza.
É curioso como algumas atuações deixam uma sensação forte do envolvimento do ator com o personagem que está representando. Foi esse o primeiro sentimento que tive em relação a Sophie Charlotte em Meu Nome é Gal, o de uma atriz que trabalhou com dedicação para encontrar o melhor caminho possível com o material que tinha em mãos – e, bem, ela recebeu a bênção da própria Gal Costa para representá-la em tela. Isso deve querer dizer muita coisa.
A timidez é uma característica que vinha frequentemente atrelada a Gal quando se falava sobre ela, mas a personalidade da artista tinha muitas outras nuances, que foram bem incorporadas pela representação de Sophie. Vale destacar também outra tarefa complexa: a atriz canta algumas das músicas do filme e o resultado não parece uma tentativa de imitar Gal Costa, mas uma boa interpretação de seu estilo.
De forma geral, talvez tenha faltado a Meu Nome é Gal uma pausa para dar mais detalhes sobre o que levou sua protagonista ao estrelato – não é que os 60 anos de carreira precisem ganhar resumo, mas é provável que o longa tenha muito mais apelo com quem já é fã do que com aqueles que cheguem à obra para conhecer a cantora. Temos, assim, uma história que funciona mais como uma homenagem a Gal e se esse era o objetivo, o trabalho foi cumprido: não há dúvidas de um dos maiores legados da cultura brasileira.