Partindo de uma premissa bastante curiosa, o diretor Danny Boyle (Trainsporting, Quem Quer ser um Milionário?) imagina um mundo onde fatores culturais e populares estabelecidos em nossas vidas não existem – e, consequentemente, o choque que isso causa ao redor das pessoas. Pois não deixa de ser inusitado, para quem conhece um mínimo de história da música dos últimos 50, idealizar o cotidiano da população sem a existência dos Beatles – a banda que mais vendeu discos na história, vinda da cidade de Liverpool, Inglaterra, com seus quatro lendários artistas – que revolucionaram a música com sua sonoridade, letras e um “algo mais” que só eles conseguiam – o encanto que causaram no mundo todo, através de todas as suas canções, mensagens e uma poesia musical que nunca o mundo tinha escutado – e sentido. Mais do que merecido, um filme que aponte sua importância cultural no planeta é facilmente bem-vindo – mas, infelizmente, este novo trabalho de Boyle acaba sendo recheado de clichês e personagens vazios, que soam terrivelmente ingênuos, em comparação com o legado da banda que mudou a música para sempre.
Yesterday conta a história do funcionário de um supermercado de uma pequena cidade inglesa, o cantor e compositor Jack Malik (Patel), que almeja o sucesso de suas músicas; tendo apenas o suporte de sua melhor amiga Ellie (James) e alguns poucos amigos, ele se sente frustrado pela falta de reconhecimento como artista. Até que um dia ele é atropelado por um ônibus, após um enorme apagão (com proporções mundiais) acontecer. Quando acorda, nota que todas as pessoas ao seu redor (e no resto do mundo) simplesmente não conhecem os Beatles e suas músicas – assustado com isso a principio, ele logo tem a ideia de utilizar as músicas da banda mais famosa de todas como se fossem suas próprias composições – e, rapidamente, atinge um sucesso enorme – mas o peso na consciência por se achar um farsante e a distância que acaba tendo de Ellie, por causa dos constantes shows ao redor do mundo, faz com que Jack olhe sua vida de outra maneira – notando como não aproveitou a companhia de sua amiga da melhor forma – além de perceber o lado perigoso do sucesso musical.
Se por um lado Danny Boyle e o roteirista Richard Curtis sabem impor facilmente o impacto cultural dos Beatles, é lamentável notar que tudo é comparado a uma história de amor simplista, envolta de personagens com atitudes infantis e situações infundadas – mesclados com mensagens obvias sobre o desgaste e oportunismo dos produtores musicais de hoje – além de criar estereótipos para cada individuo da trama – existe aquele para ser alivio cômico ou aquela para ser um tipo de vilã para a história – ambos irritantes e desnecessários – e, sim, eu estou falando do amigo ajudante de Jack, vivido por Joel Fry, e da empresária Debra de Kate McKinnon, que parece uma criação tão enfadonha e simplificada, que só está ali para expor os defeitos de Jack e humilha-lo, como se isso fosse algo engraçado – acaba sendo uma composição que apenas irrita por ser fraca, e não pela ainda forçada intensão de transforma-la em inimiga de tudo e todos – mesmo que represente o lado inescrupuloso e manipulador dos empresários musicais. Tal enfoque raso também pode ser visto na inexpressiva participação do cantor pop Ed Sheeran, interpretando ele mesmo – de maneira bastante unidimensional, onde o roteiro o mostra como um cara bondoso demais – difícil engolir que um artista tão famoso como ele queira ajudar de livre e espontânea vontade (sem querer lucro) um anônimo que ele viu na TV – algo que soa forçado, mesmo que a natureza da trama seja concebida com uma certa “licença poética” – afinal, o tal “apagão” que tirou da memória da população as músicas dos Beatles não tem nenhuma explicação – e, creio eu, deixar isso sem explicar é uma boa decisão, a fim de cair em razões forçadas que não ajudariam em nada na intenção final do longa.
O que nos traz ao alicerce principal do filme, que, mesmo sendo ingênuo, como disse lá no começo, ainda é capaz de fazer Yesterday ser um filme assistível e minimamente divertido: a relação entre Ellie e Jack, mostrando a transformação de uma grande amizade em paixão – sustentado aqui pelas atuações corretas dos dois atores – tirando o fato de conviverem juntos tão próximos e nada ter rolado, é convincente o sentimento que se cria entre os dois – a composição de Lily James para sua Ellie é adequada porque foge bem de caras de “perdidamente apaixonados” – o olhar da atriz, quando vê Jack, por exemplo, é de alguém que reprime seu sentimento – e, nesse aspecto, o Jack de Himesh Patel também acerta, ao não apelar para choros ou expressões exageradas – mesmo que o roteiro não saiba demonstrar vários traços da personalidade de Jack, como sua vontade ou paixão pela música, antes da fama; mas acerte em demonstrar sua frustração por ser taxado apenas de “funcionário do mercado” – ainda assim, o ator merece elogios pela maioria das músicas que canta – sim, ele cantou, não foi dublado – creio que apenas desliza quando interpreta a clássica “Help”, em um tom bem exagerado e querendo exprimir um óbvio sentimento de pedido de “socorro”, pela situação em que vai ficando.
Mas, em contra partida, o diretor se sai muito bem em usar outras canções com funções especificas para a narrativa; o uso de “Back in the U.S.S.R” quando ele faz uma apresentação na Rússia; a forma como apresenta “Let It Be” para sua família; o modo como Ed Sheeran pensa em deixar mais pop o refrão de “Hey Jude” – representando a mudança cultural das gerações atuais; e, talvez o melhor momento do filme, quando Jack apresenta para seus amigos a canção que dá titulo ao filme – a emoção que Boyle transmite à cena é evidente na condução exata dos atores, onde eles transparecem a emoção pelo impacto da letra da canção – e, para o espectador, não deixa de ser curioso imaginar como se fosse a primeira vez que estivesse escutando esta obra-prima em formato de música – a letra da canção se encaixa de forma natural a história dos dois personagens principais – e a forma como Jack tenta se inspirar para continuar lembrando das letras das músicas (afinal, ele não tem nenhum lugar para ouvi-las, na realidade em que se encontra) é curiosa, especialmente para quem conhece a história da banda – como quando ele precisa ir até a rua “Penny Lane” ou quando visita o tumulo de Eleanor Rigby – o diretor também faz discretas amostras de como o mundo da música é diferente hoje, principalmente, nos bastidores – como quando os marqueteiros da gravadora de Jack consideram o álbum “White Album” como algo que induziria ao racismo – embora apresente falhas em sua construção, o roteiro se mostra respeitoso quando introduz mais três personagens no terceiro ato, para ressaltar o vazio cultural que sentiríamos sem os Beatles – sendo que em um deles, o resultado lembra um pouco a abordagem de Quentin Tarantino em Era Uma Vez... em Hollywood – em uma cena especifica que surpreende e pode emocionar os fãs.
Enfim, Yesterday é um filme divertido e respeitoso ao legado da banda mais famosa de todos os tempos – mas, infelizmente, está bem longe da complexidade de pensamentos e sentimentos que Paul, John, George e Ringo transmitiram para o nosso mundo. Os Beatles, ao contrário do filme, tinham grandes ideias e sabiam transmiti-las da melhor forma possível – infelizmente, Danny Boyle expõe uma boa ideia com pouco brilho, se comparado com os garotos de Liverpool.